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Cinema: “Saint Omer” traz o colonialismo e o racismo sistémico francês à tona

Cinema: “Saint Omer” traz o colonialismo e o racismo sistémico francês à tona

É de Alice Diop este bom filme de tribunal que agora se estreia - com uma Medeia moderna que foi julgada por infanticídio. Chega esta quinta-feira às salas de cinema nacionais

Ao longo de 2016, a cineasta francesa Alice Diop partiu para Saint Omer, localidade do norte de França que dá título a este filme, para acompanhar o julgamento de Fabienne Kabou, uma estudante senegalesa, imigrante em França, acusada de ter morto a sua própria filha de 15 meses. A opinião pública enraiveceu-se pelo crime à medida que a imprensa sensacionalista punha mais lenha na fogueira.

A infanticida abandonara a bebé na praia, entregando-a a morte certa. Kabou apresentou-se contudo na barra do tribunal com uma objetividade, uma frieza e um discernimento invulgares. Sem deixar de frisar o papel irresponsável do homem que a tinha acolhido na sua casa, um francês branco, seu amante, 30 anos mais velho, e que, de facto, era o pai da criança, a senegalesa defendeu-se com uma linguagem articulada e de forma metódica, argumentando que o crime se deveu às desesperadas circunstâncias que tinha atravessado. Perplexa pela decisão de ter entregue a própria filha à morte, clamou entre outras coisas ter sido vítima de um feitiçaria e de forças malignas lançadas por familiares.

Alice Diop, ela própria filha de imigrantes senegaleses e autora de uma obra que tem abordado pessoas marginalizadas pela sociedade (em especial os descendentes das ex-colónias francesas em África que vivem nas banlieues de Paris — foi este o assunto do documentário “Nous”) não tem qualquer interesse em ‘julgar’ este caso fora das normas e que a Justiça francesa, aliás, acabou por selar com uma condenação da arguida a 20 anos de cadeia.

O que interessa a Alice Diop é meditar sobre a natureza desta tragédia de razões obscuras, e com ecos evidentes da história clássica de Medeia. Assim, decidiu Diop reimaginar pela ficção tudo aquilo que, na realidade, ela viu acontecer no tribunal, através dos olhos de Rama (Kayije Kagame), uma escritora negra, professora de Universidade (no início do filme vemo-la a lecionar uma aula sobre Marguerite Duras). Fabienne Kabou também ‘mudou de nome’, no filme ela chama-se Laurence Koly, numa boa interpretação de Guslagie Malanda.

Mesmo usando diálogos que são transcrições diretas do julgamento, o filme está tão bem escrito, as interpretações têm uma tal consistência e convicção nos tons, nos ritmos das falas, que a audiência embarca inteiramente na experiência

Em “Saint Omer” vamos pois passar quase duas horas num huis clos forense e acompanhar este caso, influenciado, como se disse, num fait divers que fez correr muita tinta. Convenhamos que, dito assim, nem parece o mais apelativo dos programas. Só que o filme, e mesmo usando diálogos que são transcrições diretas do julgamento, está tão bem escrito (Amrita David e Marie N’Diaye são as responsáveis do guião), as interpretações têm uma tal consistência e convicção nos tons, nos ritmos das falas (veja-se o discurso cristalino daquela juíza, fabuloso papel de Valérie Dréville), que a audiência embarca inteiramente na experiência e até se esquece do tanto que neste caso ficou a pairar na confusão. “Saint Omer” desmonta com inteligência cânones arcaicos de uma sociedade patriarcal, misógina, colonialista e racista.

Por isso é Laurence Koly tão cerebral, ela que nunca se deixa quebrar pelas emoções. É inegável a proximidade e a vontade de partilha que Alice Diop estabelece com as suas personagens. Assim como é impecável a forma como a cineasta mantém esta história isenta de todo o sensacionalismo que a tornou famosa — como se o filme, precisamente, quisesse vingar qualquer coisa que não foi experienciada ‘cá fora’, restabelecendo uma relação com a verdade num plano muito mais frontal.

“Saint Omer”, sobretudo pela presença de Rama, a personagem ficcional que tudo observa (e que está grávida, deparando-se com a ansiedade desse estado), torna-se também uma meditação sobre a maternidade apesar de partir de um infanticídio, por mais paradoxal e chocante que isto pareça. Não tem respostas para dar, mas levanta muitas questões.

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