Quatro décadas de guerras em Angola pelo olhar mágico de José Miguel Ribeiro, cineasta português de animação que consegue fazer um filme africano. “Nayola” é um milagre
No princípio era a guerra. Não há, mas podia haver um narrador que começasse “Nayola” nesses termos, porque, de facto, tão longe quanto a vista alcança, tão longe quanto as três personagens centrais lembram, a guerra era a realidade. Primeiro a luta de libertação contra os portugueses, depois o conflito fratricida a esquartejar Angola. Décadas de combates, mutilados, mortos, massacres, desalojados, miséria, horror. Guerra de onde não se volta, de onde não há verdadeira saída para os que a fizeram. À partida, uma peça de teatro, escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto, a chegar às mãos do cineasta português José Miguel Ribeiro, um dos nomes maiores do nosso cinema de animação. “Foi um acidente”, contou-me ele uma tarde destas. “Conheci o Jorge António nos Caminhos do Cinema Português e passado algum tempo ele convidou-me a ir a Angola fazer um workshop de animação. Eu fui, e quando me vinha embora ele passou-me a peça para ver se me interessava fazer alguma coisa a partir dali. E interessou.”
A peça é a história angolana de um mascarado que entra numa casa onde vivem duas mulheres — avó e neta — num bairro periférico a meio de uma cidade onde reina o caos. Há tiros lá fora, rusgas da polícia, pode-se ser morto na rua. O mascarado vem com intuitos ameaçadores. Esse texto corresponde, no filme, a grande parte da narrativa que decorre no presente. Fora escrito para a companhia Trigo Limpo Teatro ACERT, sediada em Tondela, e seria levado à cena em 2010. José Miguel Ribeiro teve acesso ao texto antes de ser editado. “Quando olhámos para a peça percebemos que precisava de ser desenvolvida, tinha 22 páginas, não dava um filme”, lembra o realizador. “Tínhamos a consciência de que era preciso criar a história da protagonista no passado, perceber o que lhe tinha acontecido durante todos aqueles anos de ausência. Eu não tinha vontade nenhuma de fazer uma longa-metragem de animação em Portugal, com os meios que havia, seria preciso arranjar financiamento internacional, caminho longo. E surgiu a ideia de fazer um filme a meias com o Jorge António.” Ele realizaria a parte referente à peça em imagem real e José Miguel Ribeiro filmaria o passado em animação. “Comecei a apontar o meu trabalho para 40 minutos de animação e não me assustou tanto como fazer os 80 que o filme acabou por ter.”
Em 2013, a empresa de produção onde José Miguel Ribeiro labora — a Praça Filmes, sediada em Montemor-o-Novo — tem um primeiro financiamento do ICA para o desenvolvimento do projeto. E o realizador faz-se à estrada: “Eu, o Virgílio [Almeida, argumentista] e a Ana Carina [Estróia, produtora] fomos a Angola e estivemos lá duas semanas. Fomos até ao Namibe, fizemos fotografias, falámos com as pessoas, visitámos povoações do interior.” Um primeiro mergulho numa realidade que lhe era completamente estrangeira, uma procura de imagética e de conhecimento humano. “Se eu me ia arriscar a falar de um povo, não o podia fazer através dos emigrantes que estão em Portugal, tinha de entrar numa dimensão mais profunda. Fui com o espírito aberto, reconhecendo a minha quase completa ignorância. A imagética das máscaras africanas eu já a tinha das Belas-Artes, do cubismo e do Modigliani, fui à procura daquilo que não podia ter através da Europa, os detalhes, os aromas, as cores, a forma como as pessoas se movem, os visuais, o ritmo... fui tentar perceber como eram os angolanos. A própria diversidade visual dos povos. Descobri, por exemplo, o povo Saan, que tem os olhos amendoados, como os japoneses, e que eu não conhecia.”
“Fui à procura daquilo que não podia ter através da Europa: os aromas, as cores, os visuais, o ritmo... Fui tentar perceber como eram os angolanos”
José Miguel Ribeiro, realizador
Há um momento no filme em que Nayola vai ter a uma cidade devastada por bombardeamentos, aparentemente deserta de gente e onde vagueiam feras, e entra num edifício onde as paredes estão preenchidas por azulejos antigos, de óbvia manufatura portuguesa. Ali se figuram animais selvagens e nativos, de acordo com os estereótipos do olhar colonial, encimados por rechonchudos querubins. Ao ver aquilo, Nayola toma-se de furor, pega numa barra de ferro e vai-se aos azulejos, com raiva. Parece querer destruir tudo, mas não. Quando o filme nos mostra o resultado da sanha, vemos a figura de uma mulher negra preservada; o enquadramento floral, os anjinhos, tudo em volta, nada sobra. É uma forma interessante de mostrar que toda a representação é um olhar. E que o olhar carrega um modo de ver, isto é, uma ideologia. Algo a que José Miguel Ribeiro é muito sensível. “Não queria que fosse mais um filme com estereótipos. Quando olhamos para trás e vemos os livros, os filmes que foram feitos sobre África, descobrimos um olhar distante e redutor. E isso eu não queria. Estive cinco anos a fazer investigação sobre África. E comecei a obrigar-me a abrir espaço no filme para mostrar a diversidade. Aquelas três mulheres são todas diferentes umas das outras.” E são desenhadas de maneira diversa. “Temos uma apaixonada, partiu à procura do marido e perdeu-se de si própria. Há a filha, comprometida com as causas e com uma certa reivindicação de justiça social — uma miúda que podia estar em Paris, em Lisboa, em qualquer sítio. E temos uma avó que viveu a luta contra os portugueses, a dor dos segredos que teve de guardar. Temos todas essas dimensões. E, quando mostro África, tento mostrar a dimensão do belo, o lado mágico, mas também a cidade com os candongueiros, as dificuldades, a vida de todos os dias. Nunca mostrar só um lado das coisas.”
“Nayola” é a primeira longa-metragem portuguesa de animação a chegar às salas desde sempre. Um momento histórico. “Custou 3 milhões e 200 mil euros”, revela o realizador. “O financiamento português é um pouco menos de metade.” O resto vem de coprodutores belgas, franceses e holandeses, um financiamento internacional que demorou anos a tecer. Parcerias essenciais pelo know-how, tecnologia e força de trabalho. O filme era impossível de fazer em Portugal, mesmo que aqui houvesse financiamento inteiro. Houve tecnologias utilizadas que não existem no nosso país. A coprodução permitiu, inclusivamente, no campo da animação 3D, a formação “de animadores portugueses que nunca tinham trabalhado com aquela tecnologia”. E demorou dois anos de laboração.
“Nayola” é a primeira longa-metragem portuguesa de animação a chegar às salas desde sempre. “Custou 3 milhões e 200 mil euros”, revela o realizador
José Miguel Ribeiro tornou-se conhecido sobretudo pelas suas curtas-metragens em stop motion (como “A Suspeita”, com que ganhou o prestigiado Cartoon d’Or, em 2000). Em “Nayola” escolhe o desenho animado como uma das técnicas dominantes. Ele explica: “Descobri a Escultura em Belas-Artes, apesar de eu ser de Pintura. Fui desenvolvendo gosto pela tridimensão e por uma certa libertação da construção da imagem. Na pintura trabalhamos a bidimensão, na escultura trabalhamos o espaço. Foi esse gosto que me levou para o stop motion. Qual é a grande diferença entre o stop motion e o desenho animado? É que, no stop motion, gasta-se muito tempo na construção das marionetas e dos cenários, mas, quando se começa a animar, já não nos preocupamos com a representação, estamos focados só no movimento, na aceleração, desaceleração, expressão do corpo, posição da câmara, está mais próximo de um filme de imagem real. Tens um espaço, focos que iluminam o espaço, cenário, tens a câmara e tens atores. Quando se faz um filme em 2D é mais complexo. Trabalha-se o movimento, mas também se trabalha a representação, a cada desenho tens de representar. É mais demorado, mais chato de trabalhar, mas tens mais possibilidades. No ‘Nayola’, o passado, a viagem, é feito em 2D, digital, imagem a imagem, primeiro desenhado, depois pintado, passado a limpo, colocado sobre um fundo, põem-se as texturas, as sombras, fases e fases intermináveis de trabalho, camadas sem fim; no presente, a tecnologia utilizada, o 3D, aproxima-se mais do stop motion, porque o 3D, na prática, também são marionetas, só que são marionetas digitais. A diferença face às marionetas físicas é que se tem mais controlo sobre elas, depois de uma animação já feita pode-se melhorar, podem-se colocar imagens intermédias, tudo pode ser manipulado. No stop motion tradicional, uma vez fotografado, está feito, para refazer tem de se voltar ao início.”
E porquê usar o 3D para o presente, no filme? “Para tirar partido dos micromovimentos, das pequenas expressões, do puxar de olhos, do erguer da cabeça, do baixar de ombros, tudo o que é trabalho do ator para nos dar a emoção. O filme no presente é muito emocional, no passado é mais de filme de ação. E houve um grande trabalho sobre as sombras, na criação de um espaço dramático claro-escuro, feito na pós-produção, fase que demorou mais de nove meses. Inspirei-me muito na pintura de alto contraste, no Goya, nos filmes do Pedro Costa. O passado é feito de cores saturadas, fortes, movimentos de grande amplitude — porque o passado é a guerra, e a guerra é sempre intensa.”
“Nayola” é mais africano do que português. Será possível? “Nós estivemos em Angola a mostrar o filme e testemunhei que os angolanos vêm o filme como angolano. Mais: dizem que este filme faz parte da nossa história, é um filme que nos representa.” Ainda bem.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes