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Cinema: “Interdito a Cães e Italianos” é a saga animada de uma família emigrante

Longa-metragem de Alain Ughetto recorre à técnica de ‘stop motion’, onde se dá vida a bonecos articulados — movidos e fotografados milímetro a milímetro para depois darem a ilusão do movimento
Longa-metragem de Alain Ughetto recorre à técnica de ‘stop motion’, onde se dá vida a bonecos articulados — movidos e fotografados milímetro a milímetro para depois darem a ilusão do movimento

Filme de animação, criado com a técnica do stop motion - em que bonecos articulados são movidos e fotografados milímetro a milímetro para darem a ilusão do movimento -, atravessa um século. Estreia-se esta quinta-feira nas salas de cinema nacionais

Quem entra no cinema para ver “Interdito a Cães e Italianos”, supõe-se saber ao que vai: um filme de animação, fabricado segundo a pacientíssima técnica do stop motion, em que bonecos articulados utilizando minúsculos adereços, em cenários de brincar, são movidos e fotografados milímetro a milímetro para que depois, quando as imagens passam 24 (ou 25) vezes por segundo, nos deem a ilusão do movimento.

Por isso talvez se espantem com esse início em que há mãos que cortam, colam, perfuram, constroem enquanto uma voz, a enunciar na primeira pessoa, vai contando que passou a infância de lugar em lugar por causa da profissão paterna e que, para vencer a solidão, ia fazendo coisas com tesoura, cola e cartão, deste modo nos instalando num lugar confessional — afinal o lugar de onde o filme brota. Mas o autor, até pelo apelido identificado — Ughetto —, não vai contar a sua história, mas a do avô, da avó, da família, das gentes e dos lugares de onde vieram. E mais do que contá-la, construí-la.

Num primeiro gesto de magia, vai à aldeia piemontesa onde tudo começou — Ugheterra, a terra dos Ughetto — e as escarpas que olha, a terra que recolhe, os casebres destruídos onde viviam os aldeãos, camponeses de magra terra, filmados com um olhar vindo do céu, confundem-nos quanto à sua realidade, são lugares verdadeiros ou modelos em estúdio? Porque o narrador/autor tanto trouxe de lá pedaços de carvão e castanhas verdadeiras, como uma vaca evidentemente de brincar…

Segundo gesto de magia: em meia dúzia de planos, arquiteta-se a marioneta da avó Cesira, de súbito movente, com voz, gosto (“Que lindo lenço!”), memória (“Naquela época, os pobres não andavam desmazelados. Não pediam esmola. Viviam modestamente e contentavam-se”). E a história arranca, fundada na nossa vontade de acreditar que os bonecos podem ser gente vera e os cartões pintados, casas, espoletada pelo diálogo entre o cineasta e a avó que ele construiu e animou.

Em contínuo, marcada pela ideia de que aquele mundo é fabricado, a narrativa sobre uma realidade dura está constantemente salpicada de detalhes de humor (a pergunta, à avó, “o que é que comiam?” pode coincidir com as mãos de Alain Ughetto a pintar um presuntinho de madeira e a avó a responder que era polenta com leite, deixando nas entrelinhas que presunto, nem pensar...; e quando os aldeãos estão a construir uma casa, serram deveras chapas de cartão; e o bosque, onde a ‘bruxa’ do lugar escarafuncha, é feito de brócolos). Mas, no fundo, essa narrativa é uma saga.

É uma saga que atravessa um século, uma saga de homens que, em tempo de inverno e escassez de comida, emigravam sazonalmente para França onde eram limpa-chaminés, trapeiros, homens do lixo, pegavam no trabalho que houvesse (“são trabalhadores sem qualquer dignidade profissional, aguentam tudo” — lê a avó, num jornal) — e até as crianças eram postas à jorna.

Depois, começaram a trabalhar em grandes estaleiros de construção, como o Túnel do Simplon, antes da Guerra de 14/18 os levar para os campos de batalha. Logo chegou o fascismo e, nas aldeias, “todos os patifes, por ambição e interesse, tornaram-se fascistas” (pelo menos é o que conta a avó Cesira) e a urgência de passar para o outro lado da fronteira se tornou permanente.

E, sempre claro, a trabalhar no duro, nas tarefas que os franceses não queriam. E, sempre, com a existência pontuada por mortos, crianças em que o médico não chegou a tempo, acidentes de trabalho, a vida. E filhos a nascer. A frase ‘interdito a cães e italianos’ vão encontrá-la, um dia, à porta de uma casa de pasto, em França — e é uma frase que fala por si.

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