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Kvedaravicius filmou a guerra na Ucrânia e pagou o documentário “Mariupolis 2” com a própria vida

Kvedaravicius filmou a guerra na Ucrânia e pagou o documentário “Mariupolis 2” com a própria vida

O documentário, realizado a partir das imagens captadas por Mantas Kvedaravicius no início da invasão russa, estreia-se agora em Portugal. O crítico Vasco Baptista Marques dá três estrelas ao filme, que chega às salas na semana em que se assinala um ano da Guerra na Ucrânia

Há cerca de dez anos, Kvedaravicius instalou-se em Mariupol para documentar, num filme homónimo, a vida quotidiana dos seus habitantes, então a contas com os primeiros ataques militares das forças separatistas russas. Já em 2022, regressou à cidade no intuito de registar o início da guerra que continua a opor a Rússia à Ucrânia, tendo acabado por ser morto pelas tropas russas, em circunstâncias que não foram ainda totalmente esclarecidas.

O doc que resultou desta incursão comporta em si as marcas da tragédia que afetaram a sua rodagem: trata-se de uma peça inacabada, de uma ‘obra em bruto’ constituída pela série de rushes que Kvedaravicius filmou in loco até ao momento da sua morte (e que foram depois coligidas pela sua viúva e por uma colaboradora próxima).

Por outras palavras, o que aqui temos é uma coleção de imagens que, à falta de um trabalho de découpage, engendram um corpo desprovido de vértebras, ou melhor: uma amálgama de frase soltas, que vão sendo interrompidas por pontos finais arbitrários. Mas é este ‘defeito de fabrico’ que transforma “Mariupolis 2” num objeto singularmente adequado ao desarticulado universo que retrata: o da guerra e o da comunidade de foragidos à qual o cineasta se junta.

De facto, o que o filme no fundo descreve é o dia a dia de um grupo de ucranianos (entre homens e mulheres, velhos e crianças) que, amontoados na cave de uma igreja sacudida por constantes explosões, vão tentando manter um mínimo de normalidade: veja-se aquele longo plano em que, num trabalho de Sísifo, dois homens varrem o pátio da igreja.

Pela atenção que presta a este tipo de pequenos gestos, o filme está nos antípodas da reportagem de guerra: ele é animado, não pelo desejo de veicular informações ou mensagens, mas pelo desejo de surpreender a resistência dos corpos em face de uma ameaça de iminente extinção. Apesar das suas falhas, preferiremos sempre isto aos panfletos do costume.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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