Um dos aspetos mais estimulantes de “Le spectre de Boko Haram”, o drama da camaronesa Cyrielle Raingou, permeável ao documentário, que conquistou a 52ª edição do Festival de Roterdão no passado fim de semana, é a maneira como o filme encena (a partir de um olhar que vem da realidade) a presença constante do exército, os seus movimentos, as suas táticas de defesa a cada esquina, no quotidiano de Kolofata, cidade do extremo norte camaronês assaltada pelos radicais islamistas do Boko Haram. Além dos militares fardados e de metralhadora (nem devem ser oriundos daquele lugar), quase não há homens por ali. Partiram, ou já morreram. Ficaram alguns velhos, poucos, as mulheres, e sobretudo as crianças, os órfãos entre os oito e os doze anos de idade que escutam à lareira as histórias de sacrifício e os atentados à bomba que vitimaram os seus pais, desde que o grupo terrorista trouxe a violência e a repressão.
Algumas crianças desapareceram, foram avistadas em aldeias da vizinha Nigéria, as mães temem o pior. E este “Le Spectre...”, que tem a qualidade de saber do que fala (é a primeira obra de uma realizadora nativa daquela região), sabe tocar nesta existência e na vida destas crianças com generosidade, embora o olhar esteja sempre condicionado pela tentação da denúncia, filmada a distância confortável.
Não é filme que manipule o universo infantil e que trate crianças como um joguete da comoção pediátrica, como o fraquíssimo “Numb”, do iraniano Amir Toodehroosta, em tudo oposto ao modo como Kiarostami filmava as crianças do seu país. A parte mais política da cinematografia iraniana atual está, de resto, prestes a ser revelada em Berlim com as duas novas obras de Mehran Tamadon, cineasta que tem até agora passado ao lado do escrutínio do Ocidente e dos festivais de cinema. A verdade é que o júri em que estava o cineasta filipino Lav Diaz tinha mais por onde escolher. Aliás: “Le spectre de Boko Haram”, por comparação, é um filme mais frágil que “Pebbles”, de P.S. Vinothraj, e do que “EAMI”, de Paz Encina, vencedores das edições de 2021 e de 2022 que a pandemia atirou para o streaming.
E basta olhar-se para os prémios logo abaixo, que têm finalmente em Roterdão uma hierarquia digna desse nome. Durante muitos anos (durou até 2015), a competição apostava numa dúzia de filmes, quase todos primeiras obras, e premiava três delas por igual, num pódio indistinto, de pouco compromisso (escolha que ainda se verifica no concurso de curtas-metragens em que um filme português saiu distinguido este ano, o belíssimo “Natureza Humana”, de Mónica Lima). Diretora artística do festival desde 2020, a croata Vanja Kaludjercic aumentou o número de obras que disputam o prémio máximo (16 este ano) e cimentou os Tigres como um verdadeiro concurso capaz de devolver a Roterdão o peso que o festival teve em tempos idos.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt