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Festival de Roterdão: os estados do mundo de um concurso de Tigres à procura do cinema

Os órfãos de “Le spectre de Boko Haram”, da camaronesa Cyrielle Raingou
Os órfãos de “Le spectre de Boko Haram”, da camaronesa Cyrielle Raingou

Da resistência armada dos Tamil no Sri Lanka (“Munnel”) à queda de valores do matriarcado em Marrocos (“Indivision”), do regresso forçado ao 'home movie' ditado pela pandemia (“New Strains”) à reencenação da Ucrânia violenta e corrupta dos anos 90 pós-soviéticos (“La Palisiada”), Roterdão foi um festival de fantasmas do passado a assustarem o presente, com resultados cinematográficos desiguais

Um dos aspetos mais estimulantes de “Le spectre de Boko Haram”, o drama da camaronesa Cyrielle Raingou, permeável ao documentário, que conquistou a 52ª edição do Festival de Roterdão no passado fim de semana, é a maneira como o filme encena (a partir de um olhar que vem da realidade) a presença constante do exército, os seus movimentos, as suas táticas de defesa a cada esquina, no quotidiano de Kolofata, cidade do extremo norte camaronês assaltada pelos radicais islamistas do Boko Haram. Além dos militares fardados e de metralhadora (nem devem ser oriundos daquele lugar), quase não há homens por ali. Partiram, ou já morreram. Ficaram alguns velhos, poucos, as mulheres, e sobretudo as crianças, os órfãos entre os oito e os doze anos de idade que escutam à lareira as histórias de sacrifício e os atentados à bomba que vitimaram os seus pais, desde que o grupo terrorista trouxe a violência e a repressão.

Algumas crianças desapareceram, foram avistadas em aldeias da vizinha Nigéria, as mães temem o pior. E este “Le Spectre...”, que tem a qualidade de saber do que fala (é a primeira obra de uma realizadora nativa daquela região), sabe tocar nesta existência e na vida destas crianças com generosidade, embora o olhar esteja sempre condicionado pela tentação da denúncia, filmada a distância confortável.

Não é filme que manipule o universo infantil e que trate crianças como um joguete da comoção pediátrica, como o fraquíssimo “Numb”, do iraniano Amir Toodehroosta, em tudo oposto ao modo como Kiarostami filmava as crianças do seu país. A parte mais política da cinematografia iraniana atual está, de resto, prestes a ser revelada em Berlim com as duas novas obras de Mehran Tamadon, cineasta que tem até agora passado ao lado do escrutínio do Ocidente e dos festivais de cinema. A verdade é que o júri em que estava o cineasta filipino Lav Diaz tinha mais por onde escolher. Aliás: “Le spectre de Boko Haram”, por comparação, é um filme mais frágil que “Pebbles”, de P.S. Vinothraj, e do que “EAMI”, de Paz Encina, vencedores das edições de 2021 e de 2022 que a pandemia atirou para o streaming.

E basta olhar-se para os prémios logo abaixo, que têm finalmente em Roterdão uma hierarquia digna desse nome. Durante muitos anos (durou até 2015), a competição apostava numa dúzia de filmes, quase todos primeiras obras, e premiava três delas por igual, num pódio indistinto, de pouco compromisso (escolha que ainda se verifica no concurso de curtas-metragens em que um filme português saiu distinguido este ano, o belíssimo “Natureza Humana”, de Mónica Lima). Diretora artística do festival desde 2020, a croata Vanja Kaludjercic aumentou o número de obras que disputam o prémio máximo (16 este ano) e cimentou os Tigres como um verdadeiro concurso capaz de devolver a Roterdão o peso que o festival teve em tempos idos.

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