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Cinema: as memórias de infância de Sophie revelam-se em “Aftersun”

A escocesa Frankie Corio estreia-se no papel da pequena Sophie. Paul Mescal, popular ator desde “Normal People”, interpreta o seu pai Calum
A escocesa Frankie Corio estreia-se no papel da pequena Sophie. Paul Mescal, popular ator desde “Normal People”, interpreta o seu pai Calum

A relação emocional fragmentada – mas comovente – entre uma menina de 11 anos e o seu pai está no centro de “Aftersun”, ótima longa-metragem de estreia da escocesa Charlotte Wells. O crítico Francisco Ferreira dá-lhe quatro estrelas

Como explicar a alguém o que é a memória? Esta parece ser a primeira pergunta lançada por “Aftersun”, bela estreia na longa-metragem de uma cineasta escocesa instalada em Nova Iorque, Charlotte Wells. E a memória, o que é, realmente, para uma criança de 11 anos em transição entre a infância e a adolescência? Mais: como olha essa criança para o seu pai, como o vê ela como ser humano, com os seus problemas, hesitações e dúvidas que ela não compreende, mas sente? Não é a memória uma coisa distante, dispersa, escorregadia, sobretudo para uma menina daquela idade? “Aftersun” coloca-nos todas estas questões em equação com uma graça natural e inexplicável.

Quem nos conduz e nos leva pelos seus olhos ao abismo das lembranças é a pequena Sophie (fabulosa debutante Frankie Corio), que algures no início da década de 90 passou umas férias de verão com o seu pai Calum (Paul Mescal), e até filmou os dias de descanso com uma câmara de vídeo que então estava em voga (coisa linda no filme: os telemóveis não tinham ainda colonizado as nossas vidas, ainda se ia à cabina telefónica!). Os pais estão separados, percebe-se logo. São britânicos, e lá de cima do norte, da Escócia, percebe-se logo pelo sotaque fechado, sobretudo o da miúda (que é de facto escocesa, Paul Mescal é irlandês de nascimento). Calum, por outro lado, não exerce sobre Sophie qualquer forma de autoridade paterna, há até uma cena à roda de uma mesa de snooker em que alguém os confunde com irmã e irmão bastante mais velho.

Pouco a pouco, começa o espectador a entender que algo se passa de estranho com o tempo daqueles dias preguiçosos passados entre o hotel espanhol em obras, o parque aquático, as visitas aos salões de jogos e os serões na esplanada. Na verdade, Sophie, já adulta, está a recordar a alegria e o encanto daqueles melancólicos dias passados com o pai 20 anos antes e a tentar reconciliar qualquer coisa dentro dela — mas é como criança que a vemos. O que é recordado, também tem tendência a sobrepôr-se, ou a manifestar-se sem aviso prévio.

Por exemplo, na primeira metade do filme, há um momento em que vemos Calum e a filha a ponderarem a compra de um tapete turco numa loja da especialidade — e quem atende lá diz quanto custa a bonita tapeçaria em liras turcas e em libras. Alguém antes fez um tereré no cabelo de Sophie e ela guarda-o nas cenas seguintes, pelo que não se desconfia que haja ali um corte na ação ou um flashback dentro de um flashback. Deduz-se portanto que estamos na Turquia e, de facto, foi nesse pais que o filme foi rodado, pese embora a referência inicial a Torremolinos que levou muita gente confusa a escrever que a localidade espanhola é um resort turístico turco.

O que importa a reter daqui não é obviamente o deslize dos críticos mas a tendência impressionista do filme — e lá está, toda essa falta de nitidez que banha o filme de ponta a ponta e que vem das reminiscências da infância. São evocações desfocadas — mas devastadoras. Por isso funcionam tão bem aqueles inserts e aquelas strobe lights das momentâneas cenas de discoteca que nos interrompem as visitas ao passado, serão talvez sonhos nos quais Sophie se descobre cativa, quem sabe se a antecâmara de uma tragédia. Ficção parcialmente autobiográfica, “Aftersun” conta com intérpretes fabulosos e é caso raro de uma proposta estética de risco que não fica a olhar para os seus próprios botões. Fala-nos de família, de amor e de perda (da infância) num conjunto de emoções que a canção dos R.E.M. ‘Losing My Religion’ às tantas resume, exemplarmente. Um filme a não perder.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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