Anne é uma jovem mulher, na primeira metade dos anos 60, estuda Literatura numa cidade de província francesa (Angoulême) e sonha ser escritora. Pertence a um estrato social baixo onde profissões intelectuais nunca foram hipóteses, mas tem talentos, força anímica — e vontade de pensar pela própria cabeça. Tanta que, num ambiente onde ter uma sexualidade ativa fora do casamento é socialmente penalizador, ela assume controlo do corpo e dos desejos, não tem vergonha do prazer. Só que, um dia, escreve no seu diário “ainda nada” — está a referir-se ao período, com atrasos. Está grávida. Ser, ao tempo, mãe solteira não é só um estigma, é o desmoronar de todos os projetos de vida. A lei, todavia, criminaliza o aborto que só pode ser feito em clandestinidade. E onde, como, com quem falar, a quem recorrer? O filme é, quase completamente, sobre isso. E é extraordinário.
Quando vi “O Acontecimento” pela primeira vez, em setembro de 2021, no Festival de Veneza de onde o filme sairia triunfalmente com o Leão de Ouro, pensei que não devia ser eu a escrever sobre ele. Nunca tinha acontecido que a minha identidade de género contasse para o facto de me sentir, ou não, adequado para abordar uma narrativa cinematográfica. O que se passa com “O Acontecimento” é que é de tal maneira centrado na intimidade de uma mulher — nas suas angústias, medos, desejos, dores, humilhações — e de um modo tão direto, que o facto de não ser mulher, de nunca ter sentido algo a crescer dentro do corpo e vontade de o tirar de cá, de nunca ter estado numa espécie de menoridade social em que a gravidez era encarada como justo castigo para uma atividade vista como promíscua e condenável, me limitava, de alguma maneira, o entendimento da verdade.
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