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Baz Luhrmann apresenta “Elvis”: frenético, guloso, irrequieto, megalómano, estafante

Baz Luhrmann apresenta “Elvis”: frenético, guloso, irrequieto, megalómano, estafante

“Elvis”, retrato do rei do rock and roll, é tudo aquilo que se poderia esperar de um filme de Baz Luhrmann. Chega esta quinta-feira aos cinemas

O novo filme de Baz Luhrmann arranca excêntrico e de cores garridas ‘pink cadillac’, efusivo de luz, tonitruante nos tímpanos, é show voluntariamente preenchido de tudo (e até recorre ao split screen na cena de abertura, felizmente a coisa acalma logo a seguir...), ou não fosse este o filme de um furacão, esse ovni da história da música chamado Elvis Presley. E mais se diz ainda: show saturado, ou não fosse este um filme de autor por inteiro, ainda que servido com a embalagem do blockbuster que ele também não deixa de ser. O autor, esse, é o australiano que nos deu outrora um Romeu e Julieta ‘de pernas para o ar’ e depois o musical “Moulin Rouge!” (2001), uma obra sui generis que deixou marca no início deste milénio e com a qual “Elvis”, 20 anos volvidos, tenta ombrear. Nada é pequeno, nada é modesto neste “Elvis” de ecrã muito largo e de som misturado para as plateias das salas IMAX. Estamos à escala que Luhrmann gosta e também por isso foi a empreitada exibida em primeira mão em Cannes, que é o maior de todos os festivais. Tudo transborda aqui, tudo é à grande e à francesa como por cá se diz, corrente a jorrar impetuosa. Mas será mesmo um filme sobre Elvis Presley?

“Elvis” tem 159 minutos de duração e um frenesim em que cada plano não dura mais que 8 segundos. Mas ainda antes de se entrar no filme, diga-se que tudo isto desemboca num assunto económico que é absolutamente central nesta obra, pois que ninguém se iluda neste junho de 2022: tal como “Top Gun: Maverick” (que jogou a sério e está a cobrir a parada), “Elvis” é uma Batalha de Waterloo para a indústria cinematográfica, uma questão de vida ou de morte para as salas. Depois da horrorosa pandemia e do sumiço que deixou tudo às moscas, também a Warner se chegou à frente e bateu forte no tampo da mesa, 200 milhões de dólares de budget e um desejo: dar à audiência um espetáculo que nenhum sistema caseiro de nenhuma plataforma de streaming, por mais sofisticado que seja, poderá igualar. Neste ponto, Tom Cruise e Baz Luhrmann estão no mesmo barco, no mesmo think big da experiência cinematográfica. “Elvis” (e foi Luhrmann quem o disse em Cannes) tem “um só objetivo, o de trazer as audiências de volta às salas, pois foi para as salas que este filme foi feito!”

Conta a sinopse que “Elvis” é um drama biográfico sobre Elvis Aaron Presley, mas quem for à espera disso, do best of de uma vida ou coisa celebratória que o valha, sairá defraudado. É certo que estão aqui os momentos-chave de Presley, a adolescência em família em Memphis, o arranque da carreira na Sun Records com o produtor Sam Phillips. A atração pela música negra, o blues, o soul, que acabam no corpo de Elvis por fazer curto-circuito com uma atitude essencial para o desenvolvimento do rock. O filme dá, aliás, especial ênfase à alma negra que Elvis tem dentro dele, ao “branco que se dava com negros” porque gostava da música deles e aprendera a tocar com eles. Nos sinistros anos 50 de McCarthy, isso era coisa que saltava à vista. Um Elvis the Pelvis contra o racismo? Sim, o filme de Luhrmann vai vincar muito isto. Veja-se, por exemplo, o destaque que a primeira metade da obra dá à amizade de Elvis com B.B. King — o mesmo B.B. King que, em 2010, diria que “não havia uma só gota de racismo naquele homem”. É curioso: se a figura de Elvis Presley no fim da vida e na realidade histórica é associada a ideias políticas conservadoras, mais próximas dos republicanos (a admiração dele por Nixon nos anos 70), Luhrmann prefere sublinhar antes o ‘coração democrata’ que Elvis tinha na sua juventude. É verdade, está cá o essencial, a loucura das fãs, a Elvismania, o ataque à moral e aos bons costumes daquela forma de gingar as ancas, o casamento com Priscilla e os altos e baixos de uma carreira. Só que esta cronologia em “Elvis” é sempre uma soma de momentos fragmentados que a voice over de outra personagem organiza. E assim se escapa Luhrmann ao ramerrame do biopic ortodoxo. Aliás, o ponto de vista sobre Elvis é de tal forma enviesado e em plano inclinado que o espectador até se pergunta às tantas se este filme, em vez de “Elvis”, não se deveria ter antes chamado “Colonel Tom Parker”. Aqui sim, entramos na história.

“Elvis” tem 159 minutos de duração e um frenesim em que cada plano não dura mais que 8 segundos. O objetivo é dar à audiência um espetáculo que nenhum sistema caseiro de nenhuma plataforma de streaming poderá igualar

O dito “Colonel” Thomas Andrew Parker (1909-1997) foi o manager protetor e em simultâneo o parasita sem remorsos que abriu a Elvis uma carreira no show business e ao mesmo tempo o impediu de viajar para fora dos Estados Unidos (pois sairia da sua alçada), explorando impiedosamente o talento inato do intérprete de ‘Jailhouse Rock’ e ‘Love Me Tender’. Teria sido Elvis o ícone que foi sem o faro do seu agente na sombra com ideias radicais de merchandising? Até crachás com a insígnia “I hate Elvis!” então se vendiam (e assim se ia à carteira dos detratores...). Que relação de amor-ódio existiu ao certo entre os dois homens? Baz Luhrmann interessa-se há muito pelo ciúme (e suas consequências afetivas) enquanto ideia dramática. É o tema central da sua obra e, no caso da relação Elvis-Tom, uma fonte de inspiração abundante. Aliás, o cineasta citou em Cannes o caso de “Amadeus”, o filme de Milos Forman de 1984, que também não era “um filme sobre Mozart” mas sim sobre “o ciúme entre Salieri e Mozart.” Contra o cliché do “atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher” (e remetendo, aliás, a figura de Priscilla Presley para um lugar secundário), o que este filme nos vem sugerir é que, atrás de Elvis, houve um farsante genial com duas caras, ora pai substituto que lhe pergunta se ele “está pronto para voar”, impulsionando-o para o êxito, ora sanguessuga capaz de estipular em contrato — pasme-se! — o direito vitalício a 50% de todos os lucros. Só muito depois se descobriria que o “colonel”, afinal, não era coronel coisa nenhuma (a patente era um título honorário), nem se chamava Tom, tão-pouco Parker, era tudo fachada, aldrabice do entrepreneur holandês Andreas Cornelis van Kuijk que, aos 20 anos, emigrara ilegalmente para os EUA antes de mudar de nome. Fez de tudo um pouco e sempre sem passaporte legítimo (por isso se afastava ele das fronteiras), passou por circos e feiras, até começar carreira como promotor musical no fim dos anos 30. Em 1955, conheceu o ainda desconhecido Presley e fisgou-o, agarrando-se a ele como uma lapa. E nenhum teria sido o que foi sem o outro.

O nosso interesse de espectador fica em “Elvis” sempre mais próximo da sordidez de Tom Parker que do ícone do título (algo que pode ser interpretado como uma falha do filme) e isso deve-se muito ao papel de Tom Hanks e à ambiguidade que o ator consegue oferecer a esta personagem escorregadia, viscosa, perversa (em certos momentos, ele chega a dar ares ao Hank Quinlan de Orson Welles em “Touch of Evil”). Por outro lado, Austin Butler é uma frágil encarnação que nunca chega realmente a calçar os “blue suede shoes” de Elvis. Dir-nos-ão que não era fácil fazer melhor, que Elvis só houve um, por aí fora... O desequilíbrio entre os dois papéis, contudo, é notório. E se o é, só vem realçar que este filme está muito mais do lado de Tom que de qualquer outro lado. Ao mesmo tempo, temos que lidar com a megalomania à moda de Luhrmann, com aquele barroquismo destravado em que mil e um décors, mil e um figurinos e adereços de uma grande produção desaguam a velocidade de cruzeiro nos tais planos que nem 8 segundos duram — e aqui é a imponência a fazer frente à estafa, a ver qual das duas ganha, que filme de Luhrmann sem contradições não é coisa que se apresente.

Muito mais do que um retrato do show business na América dos anos 50, 60 e 70, “Elvis” é um filme sobre a guerra entre o que é show e o que é business. De como eles dependem um do outro. E o drama que resulta quando eles se desencontram. Esta questão coloca-se agora ao cinema e ao que ele até hoje perpetuou enquanto experiência coletiva. Neste sentido, e para lá do seu maior ou menor valor artístico, “Elvis” é um espelho deste tempo.

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