James Cameron em entrevista exclusiva ao Expresso: “Com a pandemia, senti-me o dinossauro a olhar para o meteorito à espera da catástrofe”
Ethan Miller
Fábula ecologista antiguerra e compêndio de todo o trabalho até à data de James Cameron, “Avatar: O Caminho da Água” leva a saga para um drama familiar de contornos operáticos. A nível tecnológico, é um arrebatamento. O realizador falou em exclusivo ao Expresso sobre o mais esperado filme do ano, que chegou às salas esta semana
Agora que olhamos para o seu trabalho em retrospetiva, nota-se que quase todos os filmes que fez tocaram na ficção científica. O que é que o fascinou tanto nela?
Sempre a adorei. Desde miúdo, a ver televisão. Não era tanto pela magia, sonhava com outros planetas, outros futuros, com robôs. E depois li ficção científica amplamente. Não creio que um romance ou mesmo um conto desse género me tenha escapado nos meus tempos do liceu, no fim da década de 60. Passei pelos clássicos, pelos livros dos anos 20 e 30 aos Pulps e à Golden Age, depois veio a New Wave da ficção científica dos anos 60 e 70 e eu simplesmente lia-os vorazmente.
Os filmes também, as séries na TV?
Ah, sim, “Forbidden Planet” [“Planeta Proibido”, 1956] deixou-me marca profunda. E depois chegou aquele momento. Eu tinha 14 anos. E vi “2001: Odisseia no Espaço”. Foi uma epifania. Os filmes até essa altura eram para mim só filmes, nunca tinha pensado neles como uma forma de arte. E de repente surge aquela obra artística, a despertar-me a consciência. O impacto foi duplo porque eu prometi a mim próprio outra coisa: vou descobrir como é que eles fizeram isto. Os filmes já não eram só os atores, a história, o guarda-roupa e a maquilhagem... Aquilo era inexplicável. “2001...” é também um dos primeiros filmes que me lembro que teve um livro sobre a maneira como foi feito, escreveu-o Jerome Agel. E era bastante denso. Eu não compreendia nem metade do que lá estava mas forcei-me a lê-lo vezes sem conta até o perceber. Foi graças a esse livro que comecei a pesquisar coisas em áreas como a arquitetura e a construção de modelos, a fotografia, os efeitos especiais, etc. Foi a primeira vez que pus o pé no caminho do cinema.
“Logo a seguir a ‘Titanic’ estive oito anos a trabalhar em exploração oceânica, a desenvolver robôs, câmaras subaquáticas, a mergulhar em submersíveis à volta do mundo, entre outras coisas. E a seguir a ‘Avatar’ continuei essa pesquisa”
Tinha um autor de ficção científica favorito nessa altura?
Depende do momento da linha temporal, lia muito Asimov e Clarke num certo período, cruzados com os clássicos, adorava Ray Bradbury quando já estava na faculdade, começava então a pensar na ficção científica a um nível metafórico. Tive várias fases. Interessei-me muito pelo movimento Cyberpunk dos anos 70, William Gibson, Neal Stephenson e o seu “Snow Crash” [“Samurai: Nome de Código”], e conceitos que apareceram na altura como o “metaverso”.
Seria cineasta sem a ficção científica?
Seria outra pessoa, não só na minha atividade de cineasta. Perguntam-me agora porque passou tanto tempo entre o primeiro e o segundo capítulo de “Avatar”, foram 13 anos, mas estas pausas não foram pausas. Logo a seguir a “Titanic” estive oito anos a trabalhar em exploração oceânica, a desenvolver robôs, câmaras subaquáticas, a mergulhar em submersíveis à volta do mundo, entre outras coisas. E a seguir a “Avatar” continuei essa pesquisa.
Consegue perceber de onde vem esta sua atração pela tecnologia? Porque um filme como “Avatar: O Caminho da Água” obriga-nos a falar disso.
Provavelmente, vem de alguma insegurança interior (risos). Há realizadores, a que eu poderia com todo o respeito chamar de humanistas, que fazem filmes com dois atores e uma câmara. E alguns são excelentes. Mas eu preciso de outras coisas. De outros truques. Esta é a noção de show e de espetáculo que me impus. É o pensamento do miúdo de 14 anos que eu fui quando vi “2001: Odisseia no Espaço” pela primeira vez e querer que a experiência se repita. Sabia que nos velhos tempos, nos anos 50 em Hollywood, os departamentos de efeitos visuais dos estúdios — e cada estúdio tinha o seu — eram chamados de departamentos de truques? Sempre pensei que “trick department” seria o nome da minha empresa de efeitos especiais, se algum dia criasse uma. Acabei depois por chamar-lhe Digital Domain, pois apanhámos realmente a transição do analógico para o digital. Isto não quer dizer que os filmes pequenos não me interessem, adoro vê-los, mas prefiro os mais espetaculares em termos do que eu faço, sinto-me mais forte neste campo.
Em 2009, quando saiu “Avatar”, toda a gente dizia que o futuro do cinema era o 3D, lembra-se?
O que eu acho que aconteceu com o “Avatar” é que o filme aparece no momento certo para tornar o 3D familiar. A maior importância do filme a nível técnico é o seu timing. Todos nós estávamos a descobrir há 13 anos o que a nova tecnologia digital podia representar para as salas, nomeadamente com a inclusão do 3D e das imagens de alta definição em todos os projetores de cinema mundo fora. Posso dizer-lhe que quando o “Avatar” foi lançado havia 6 mil ecrãs no planeta preparados para exibi-lo, incluindo a China e, obviamente, os Estados Unidos. Hoje, os ecrãs preparados para o 3D digital são 120 mil. É um múltiplo enorme.
Se as pessoas não o quisessem, o 3D não teria atingido esta amplitude.
Nem estaria tão disponível para tanta gente como hoje. Em setembro deste ano, como sabe, lançámos o primeiro “Avatar” em reposição durante um breve período de tempo. 97% dos bilhetes vendidos foram para as sessões em 3D. E este é um sinal que vem das bilheteiras. No caso dos filmes que têm exibição em 3D e em 2D simultâneas, e pouco importa o género, animação, infantil, etc., o 3D tem uma procura superior na ordem dos 30%. Ou seja: a audiência já tem uma perceção prévia do que o filme é, como foi feito e como deve ser visto. Não sou bom adivinho mas prevejo que o mesmo se vai passar com “Avatar: O Caminho da Água”. E apesar disso não me importo: se alguém preferir vê-lo em 2D, está tudo bem por mim. As cores são as mesmas. As emoções são as mesmas.
“A pandemia foi a primeira ameaça existencial para o cinema. A questão é: se não nos reunimos, não há cinema”
Mas agora discutimos outras coisas: se há, simplesmente, futuro para o cinema. E como sobreviverão as salas após a pandemia. De que modo pode “Avatar: O Caminho da Água” contribuir para esta discussão?
Não creio que um só filme possa ter um efeito tão grande que dele se diga que vai mudar o cinema. Neste momento venho de concluir cinco anos de trabalho da produção de “Avatar: O Caminho da Água”, de “Avatar 3” e já de uma parte do episódio 4. Quando fomos atacados pela pandemia, essa sim, foi uma mudança. O streaming até então continuava a ser só uma extensão do que acontecia primeiro nas salas. Tal como o VOD, que ia ‘mordiscando’ a experiência do cinema. Estava tudo a funcionar e no seu lugar, sem feridas mortais, digamos assim. O box office tinha estabilizado e crescia, aliás, em certas partes do planeta. Mas a pandemia foi fundamentalmente diferente. Foi a primeira ameaça existencial para o cinema. A questão é: se não nos reunimos, não há cinema. E isso preocupou-me. Há poucos meses não sabia se haveria sequer forma de mostrar “Avatar: O Caminho da Água” tal como ele foi feito. Senti-me o dinossauro a olhar para o meteorito à espera da catástrofe.
Courtesy of 20th Century Studios
Saímos de “Avatar: O Caminho da Água” com esta sensação de ter visto um filme que nunca foi feito a nível técnico. É um ponto de viragem. Presumo que esta nova técnica de imagens geradas por computador a partir da captura de movimento debaixo de água foi muito significativa. O que nos poderia dizer brevemente sobre ela?
Resolver esse problema técnico foi uma fase crítica, tivemos outros, mas esse foi o principal. Eu gosto de solucionar problemas. E tem razão, esta técnica salta particularmente à vista. Mas lá está, podíamos ser os melhores a resolver coisas técnicas e fazer um filme horrível. O meu objetivo foi fazer um bom filme. Por isso tive que usar os dois hemisférios do cérebro, um é técnico e desfruta os desafios da engenharia, tal como quando construo um batiscafo para mergulhar no Pacífico, o outro, o mais importante, é o que escreve o argumento, faz o casting, trabalha com os atores... Ouça, a audiência está-se nas tintas para a tecnologia atrás de um filme. Podem apreciar a experiência numa primeira leitura mas o envolvimento será sempre feito com a história, as personagens e aquilo que os seus olhos veem. De coração para coração. O principal são as pessoas. E ao contrário do que muita gente em Hollywood pensa, é assim que o cinema funciona desde a origem, com uma parte técnica e outra emocional — e ambas são compatíveis. Sempre foram. O cinema sempre foi um medium técnico, desde o dia 1, desde os sketches criativos de Georges Méliès que nunca tinham sido tentados antes.
Julgo que já tinha dito o mesmo em 2009...
E disse: se chegámos ao ponto em que podemos inventar tudo, só a nossa imaginação é o limite. Agora estou a dobrar a aposta. Havia um último bastião para conquistar, a CGI Water. Ando a lidar com este problema ‘há séculos’. A primeira vez que usei imagens geradas por computador em “O Abismo” (1989) foi para criar água. Assisti ao desenvolvimento desta questão ao longo de décadas. E agora estamos quase lá, “Avatar: O Caminho da Água” foi feito para tentar ultrapassar este problema. E sempre que um problema técnico é resolvido no cinema, a indústria tende a ganhar com isso, venha o filme de onde vier, seja ele como for. Toda a gente ganha com isso. Mas volto a sublinhar: se “Avatar: O Caminho da Água” for um êxito, não o será pela técnica, mas sim por Sam Worthington, Zoe Saldaña, Sigourney Weaver e todos os outros.
No que é que “Avatar: O Caminho da Água” difere de projetos comerciais em larga escala como a franchise Star Wars ou os filmes da Marvel?
Há uma diferença enorme porque eles são incessantes. A Marvel não pára, o universo Star Wars lança um filme por ano. Vão trocando de realizadores e a manufatura é muito mais industrial. O que conta é o produto e, mais ainda, a sua colocação eficaz no mercado. Precisam dessa cadência para que o produto se mantenha comercialmente vivo. Eu não posso nem quero fazer o mesmo. Não tenho cinco clones de mim próprio para chegar a esse ponto e os filmes que realizo quero que sejam, de facto, os meus. Por outro lado, tenho outros interesses além do cinema. Tive que escolher entre a minha devoção à exploração dos oceanos, todo esse trabalho científico que tenho feito, e que considero ser importante, e o regresso aos filmes de Hollywood. E a verdade é que estes últimos têm sido preteridos. Já em relação ao projeto “Avatar”, não quis realizar apenas um filme, delegando depois a função a terceiros, mas toda a saga a que a nossa equipa se propôs [cinco filmes]. Com um desejo: que esta aventura tenha valor que lhe permita perdurar no tempo.
No fim do filme, “Avatar: O Caminho da Água” parece perguntar-nos isto: pode a Humanidade transformar-se? Qual é a sua opinião?
Tenho um feeling que me diz que pode. Não quer dizer que isso vá acontecer. Mas podemos mudar. A questão essencial é esta: os Na’vi de Pandora não são aliens. Somos nós. Física e metaforicamente. Eles representam a nossa consciência, o respeito pela natureza, talvez aquilo que a Humanidade foi outrora e já não quer ser. E representam um pouco da nossa infância, em que nos conectamos naturalmente com a natureza, os animais, as plantas, a floresta... Eles são a melhor versão de nós próprios, em contraponto à guerra, que é o pior que temos para dar. “Avatar” é um filme de humanos para humanos. E há um certo otimismo nisto. Se a audiência voltar a gostar do filme, responde à sua maior preocupação. O êxito do primeiro “Avatar” deixou-me feliz mas não só pelo êxito em si. Afinal, fizemos um filme com preocupações ambientais muito fortes e o êxito provou que havia uma métrica de aceitação.
Mas precisa “Avatar: O Caminho da Água” da guerra, e da ação, para entreter?
É uma questão interessante. Eu passei por uma espécie de crise de fé na montagem, julguei que ele estava a ficar demasiado violento, queria encontrar um balanço entre a beleza, a espiritualidade, e as batalhas, a guerra, isto é: entre a luz e as sombras. Achei que ele se estava a tornar muito cruel, muito negro. E cortei dez minutos. Mas as batalhas de “Avatar: O Caminho da Água”, embora usem o mesmo vocabulário do primeiro filme, são muito diferentes. Em 2009, dava-se basicamente um confronto entre os bons e os maus. Agora espera-nos uma revolta. A revolta dos Na’vi e dos Metkayina. Estruturalmente, são coisas diferentes. Não posso dispensar a violência porque sou realizador de filmes de ação mas ela tornou-se um dilema para mim. Quando olho para filmes que fiz há 20 ou 30 anos como “O Exterminador Implacável”, não sei se os faria hoje, não sei se quereria fetichizar as armas daquela maneira no mundo atual. O que se está a passar com as armas hoje dá-me voltas ao estômago. Estou muito feliz de me ter mudado para a Nova Zelândia, onde eles baniram tudo o que é metralhadoras depois do atentado à mesquita [em março de 2019].
“Avatar: O Caminho da Água” tem um propósito político?
Claro que sim, mas esse é apenas um aspeto do filme. Há um crime moral na história. E é um crime ecológico. Estou bastante preocupado com a sustentabilidade do planeta, a conservação dos oceanos, como pai de família, com cinco filhos, quero expressar artisticamente a minha reflexão sobre estes assuntos. Falámos bastante deles com os atores. Eu gostava que “Avatar” não pudesse reduzir-se a meia dúzia de palavras. Aliás, a situação ideal para mim seria que o espectador fosse ver o filme e saísse da sala sem conseguir explicar o que experienciou.
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