Livre e Bloco insistem em "voz autónoma" de Portugal no reconhecimento da Palestina: Médio Oriente domina audições em Belém
ANTÓNIO COTRIM
Livre, PAN e Bloco foram os primeiros partidos a serem ouvidos pelo Presidente da República no âmbito das audiências sobre o Orçamento do Estado. Mas o conflito entre Israel e o Hamas também marcou as conversas com Marcelo
Além do OE2024 e dos problemas os problemas na saúde, o conflito entre Israel e o Hamas acabou também por ser um dos temas que têm dominado as audições dos partidos em Belém, que começaram esta segunda-feira. Convocados pelo Presidente para falar sobre o Orçamento do Estado, os líderes partidários acabaram também por usar o momento para falar sobre o Médio Oriente, tendo em conta as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa na sexta-feira, que acabaram por dominar boa parte do fim-de-semana.
Rui Tavares, em nome do Livre, o primeiro partido a ser recebido, relatou aos jornalistas que nesta reunião a delegação do Livre falou ao Presidente da República de duas propostas de resolução do partido sobre Israel e Palestina, que foram entregues na Assembleia da República em 18 de outubro. Um projetos de resolução manifesta "apoio às posições e às exigências humanitárias que têm sido feitas pelo senhor secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU)", António Guterres, e o outro propõe "passos concretos para o reconhecimento da Palestina", referiu.
O deputado do Livre disse que houve "infelizmente um pedido de adiamento por parte do PS" para que o debate destes projetos de resolução em Comissão de Negócios Estrangeiros "fosse adiado para depois do processo de Orçamento do Estado". De acordo com Rui Tavares, "a independência da Palestina e a solução de dois estados" é algo que "a comunidade internacional cada vez mais vê como sendo a única solução" para se "sair desta espiral de conflito e violência" e "o senhor Presidente, evidentemente, concorda com isto".
Em dezembro de 2014, a Assembleia da República aprovou uma resolução para o reconhecimento da Palestina como Estado independente e soberano, que foi proposta por PSD, PS e CDS-PP e aprovada por estes três partidos, que prevê que esse reconhecimento seja feito em coordenação com a União Europeia. Na altura, os partidos mais à esquerda viram rejeitadas propostas que recomendavam o reconhecimento do Estado da Palestina sem articulação com a União Europeia.
Quanto ao OE, o porta-voz e deputado do Livre afirmou, se nada mudar na especialidade, votará contra a proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) na votação final global, reivindicando mudanças na habitação, ferrovia e ensino superior. "O resultado das nossas deliberações internas é de que, se não mudasse nada na especialidade, essa abstenção seria um voto contra na votação final global", declarou o deputado único do Livre aos jornalistas.
Entre as reivindicações do Livre, Rui Tavares destacou a criação de um fundo de emergência na habitação, o alargamento do passe ferroviário nacional e mudanças no financiamento da ciência, investigação e ensino superior. Segundo o deputado, um dos dois porta-vozes do partido, estes são "três elementos essenciais de propostas do Livre" de alteração ao Orçamento na especialidade.
A delegação do Livre recebida pelo chefe de Estado incluiu os dirigentes Ana Natário, Paulo Muacho, Tomás Cardoso Pereira e Isabel Mendes Lopes, além de Rui Tavares - que é porta-voz do partido em conjunto com Teresa Mota.
"Portugal tem de ter uma voz autónoma"
Á semelhança de Rui Tavares, também a líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, defende que Portugal deve reconhecer o Estado da Palestina sem esperar por uma posição conjunta europeia. À saída da conversa com Marcelo, Mortágua, que foi a primeira dirigente partidária a condenar as palavras do Presidente , pediu que Portugal "fale a uma só voz" e subscreva as posições do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres.
Mariana Mortágua reiterou as posições do seu partido por um "cessar-fogo imediato" e pelo "reconhecimento do Estado da Palestina" pelo Governo português, de forma autónoma da União Europeia. "Está em curso um genocídio, um processo de limpeza étnica, com a morte de milhares crianças, de milhares de civis, com ataque a campos de refugiados, a hospitais, uma situação insustentável. Perante os sucessivos ataques ao direito internacional, as violações do direito internacional, Portugal tem de ter uma voz autónoma", argumentou.
Sem abordar diretamente a discordância que expressou em relação a declarações do Presidente da República sobre esta matéria, a deputada declarou que, “aliás, o Parlamento já o reconheceu” o Estado da Palestina. Em dezembro de 2014, a Assembleia da República aprovou uma resolução para o reconhecimento da Palestina como Estado independente e soberano, que foi proposta por PSD, PS e CDS-PP e aprovada por estes três partidos, mas que prevê que esse reconhecimento seja feito em coordenação com a União Europeia.
Essa resolução recomenda ao Governo que "reconheça, em coordenação com a União Europeia, o Estado da Palestina como um Estado independente e soberano, de acordo com os princípios estabelecidos pelo direito internacional". Na altura, os partidos mais à esquerda viram rejeitadas propostas que recomendavam o reconhecimento do Estado da Palestina sem articulação com a União Europeia. O BE reapresentou agora uma iniciativa nesse sentido, um projeto de resolução, que deu entrada em 27 de outubro, para que o Governo "reconheça imediatamente o Estado da Palestina com as fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias de 1967".
Para lá da questão orçamental, que motiva estas audições, a líder do Bloco quis levar ao Presidente as suas preocupações com o Serviço Nacional de Saúde, tendo acusado o Governo de "empatar" as negociações com os sindicatos dos médicos, recuando nos compromissos, e considerou que isso se traduz num convite a que saiam do SNS.
"O Governo sabe disto e, em vez de ir ao encontro dos profissionais de saúde que querem resolver o problema do SNS, tem vindo a prolongar estas negociações desnecessariamente. Tem vindo até mesmo a empatar estas negociações, não pondo por escrito o que vai dizendo oralmente, recuando nos compromissos que assume nas reuniões sem chegar a uma conclusão", acusou. Segundo a coordenadora e deputada do BE, "neste momento a incapacidade do Governo para chegar a um acordo com os médicos está a traduzir-se, na verdade, num convite para que os médicos saiam do SNS".
"Ao não negociar, ao não encontrar uma solução, o que o Governo está a fazer é a convidá-los a sair do SNS e em muitos casos a sair mesmo do país, e nós não podemos aceitar isso", reforçou.
Outro assunto que o BE levou à reunião de hoje com o chefe de Estado foi o acesso à habitação, em relação ao qual Mariana Mortágua disse que "nada está a ser feito" para travar a subida de juros dos empréstimos bancários e das rendas, qualificando a situação como "uma emergência".
PAN apela ao diálogo
A porta-voz do PAN, que como o Livre também se absteve na votação do OE na generalidade, pediu ao Governo do PS que "não se feche na sua maioria absoluta" e negoceie o Orçamento do Estado na especialidade com a oposição em matérias como habitação e impostos. à saída do encontro com o Presidente, Inês de Sousa Real disse que "o ónus neste momento está do lado do Governo" e deixou um apelo: "Que o Governo não se feche na sua maioria absoluta e que seja de facto dialogante com as forças da oposição".
Segundo Inês de Sousa Real, são necessárias alterações ao Orçamento para fazer face à "crise habitacional", o que implica "pôr a banca a ajudar também os portugueses". A deputada do PAN reivindica também medidas de "transição energética e climática" para que haja uma "fiscalidade verde, que efetivamente atinja as empresas que mais lucram e que mais poluem". "Neste momento está tudo em aberto, o sentido de voto na votação final global. E o Governo terá de ir ao encontro destas medidas", acrescentou.
Inês de Sousa Real estava acompanhada pelos dirigentes do PAN Tânia Mesquita e António Morgado Valente.
PCP admite alterar voto se salários aumentarem “de forma significativa”
Depois da reunião com Marcelo Rebelo de Sousa, o secretário-geral do PCP admitiu que o partido poderia alterar o sentido de voto no OE - os comunistas votaram contra o documento na generalidade -, caso o Governo concordasse com as propostas do PCP como baixar o IVA da eletricidade ou aumentar salários significativamente. Contudo, Paulo Raimundo reconheceu que se trata de um cenário improvável. "Se for essa a opção do governo, naturalmente que estaríamos disponíveis para dar esse acordo. É claro que não me parece que seja essa a opção do Governo", assinalou.
Entre as medidas que o PCP exigiu ver incluídas no OE, o dirigente comunista indicou "uma maior justiça fiscal, baixando impostos para quem trabalha e trabalhou, baixando o IVA da eletricidade, do gás e das telecomunicações, acabando com coisas completamente injustas e desproporcionais, como o aumento injustificado do IUC" e também se o executivo aceitasse "aumentar salários de forma significativa, a começar logo na administração pública, e aumentar pensões que possam corresponder aquilo que é o aumento brutal do custo de vida".
O líder comunista indicou ainda que, na audiência, o Presidente da República transmitiu não ser indiferente a esta situação e que “acompanha a realidade difícil da vida das pessoas”.
Tal como está, continuou Paulo Raimundo, o OE “limita salários e pensões, limita investimento público, não dá resposta às necessidades que estão à vista de todos, em particular nos serviços públicos e, de forma muito concreta, no SNS”. Por isso, o PCP vai insistir, na especialidade, em medidas que "são justas, e a cada dia que passa mais necessárias".
Questionado também sobre as recentes declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a guerra entre Israel e o Hamas, o secretário-geral do PCP respondeu que esse tema não foi abordado na audiência e que, “independentemente da expressão utilizada”, o chefe de Estado “está comprometido com as decisões das Nações Unidas”.
Interpelado ainda sobre o caso das gémeas que vivem no Brasil e receberam um tratamento de quatro milhões de euros no Hospital de Santa Maria, Raimundo considerou que as explicações do Presidente da República “estão dadas” e que a prioridade é “garantir que o SNS funciona”.