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Do “Soares é fixe” ao criador do “sistema de donos disto tudo”: Soares para todos os gostos numa sessão solene sem incidentes

Do “Soares é fixe” ao criador do “sistema de donos disto tudo”: Soares para todos os gostos numa sessão solene sem incidentes
Nuno Botelho

Soares da liberdade, Soares ecologista, Soares anti-comunista, Soares frentista de esquerda, Soares da descolonização e Soares da contra-revolução, Soares do compadrio, da Europa, da democracia e até Soares das bochechas. Na sessão com que o Parlamento assinalou o centenário do seu nascimento, não houve nada do seu legado que não fosse explorado por cada um dos partidos, elogiando ou criticando, em favor das agendas do presente.

Do “Soares é fixe” ao criador do “sistema de donos disto tudo”: Soares para todos os gostos numa sessão solene sem incidentes

Nuno Botelho

Fotojornalista

"Sem ele, Mário Soares, não seria possível uma sessão evocativa tão livre como a de hoje: uns livremente evocando mais os seus méritos, outros evocando livremente os seus deméritos. Uns louvando a democracia que ajudou a construir, outros querendo outro futuro que não o que ele sonhou”. Esta foi uma das frases com que, ao final da manhã desta sexta-feira, o Presidente da República encerrou a sessão parlamentar solene com que os deputados assinalaram o centenário do nascimento de Mário Soares (7 de dezembro de 1924) - uma sessão desta vez sem incidentes, ao contrário do que aconteceu no encerramento do debate do OE2025, e com a presença de apenas um ex-primeiro-ministro (Pedro Santana Lopes) e de um ex-Presidente da República (Ramalho Eanes).

Desta forma, o chefe do Estado disse aos críticos do fundador do PS que a liberdade que na manhã desta sexta-feira tiveram para abertamente o criticarem, a devem a Mário Soares, “várias vezes o melhor de todos nós”. Para Marcelo, a sua importância mede-se pelo facto de se deverem a Soares os “traços identitários” que ainda hoje definem o regime: “liberdade, democracia e Europa”. Ou seja: “Entre os anos 40 do século passado e a viragem do século ele esteve e marcou tudo ou quase tudo o que foi decisivo em Portugal”, sendo por isso que o país “não o esqueceu, não esquece e nunca esquecerá”.

Além disso, Soares “projetou Portugal na Europa e no Mundo” e fê-lo de forma “sempre livre, sempre igualitária, sempre anti xenófoba e sempre tolerante, ou seja, sempre democrática”. “Sem ele, a liberdade, a democracia e a Europa teriam esperado mais, ou vivido atalhos mais penosos, ou conhecido mais sobressaltos ou empecilhos, ou mesmo conflitualidades internas, autoritarismos ou desvios não democráticos.


Nuno Botelho

Antes de Marcelo, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, iniciaria o seu discurso salientando que a sessão solene não serviria apenas para assinalar o centenário do nascimento do fundador do PS mas para algo mais: “Hoje, celebramos o nascimento de Mário Soares. Repito: celebramos.”

Aguiar-Branco tentou expressamente retirar a Soares a carga de figura do passado: “Não é uma figura histórica. Não faz parte do nosso passado. É bem presente. E está presente. Em tudo o que fazemos e dizemos hoje.” E depois recordou um dos slogans da campanha que levou em 1986 a Presidente da República: “Disse, na Sessão Solene do 25 de novembro, que ‘Soares foi fixe’. Corrijo: Soares é fixe.


"Soares foi um pêndulo"


Aguiar-Branco ‘responderia’ também às acusações de “cata vento” de que Soares foi muitas vezes alvo: “Os mais distraídos podem considerar muitos dos seus gestos como ‘contradições’. Nunca foram ‘contradições’. Pelo contrário”, afirmou. “Muito mais que o fiel da balança, Mário Soares foi um pêndulo” (a mesma palavra já tinha sido usada, momentos antes, por Pedro Nuno Santos, no discurso com que representou o PS na cerimónia.) Deslocava-se de um lado para o outro, em função daquilo que acreditava ser o melhor para o país, em cada momento” e às vezes “abdicando, quando em causa um bem maior, de dogmatismos, tanto ideológicos como partidários”, “sem inflexibilidades, nem intransigências” e “tudo para garantir o equilíbrio” em função de um bem maior: “Um Portugal europeu, um Portugal democrático, um Portugal pluralista”.

O presidente da AR salientou também que Soares “antecipou” debates hoje muito acesos (sobre a “polarização e o populismo” e sobre “a liberdade de expressão e a pluralidade” e “o que podemos dizer e o que não gostamos de ouvir”) e pareceu referir-se implicitamente aos incidentes que marcaram a sessão plenária de encerramento do OE2025: “Como bom republicano que era, acreditava que esta sala, onde nos encontramos hoje, não era, não é, não pode ser um problema. Era, é, tem de ser a solução. Que a polarização não se resolve com proclamações de virtude, mas com política. Fazendo política, no sentido nobre que a palavra tem. Discordando, com lealdade. Negociando, com abertura. Construindo o futuro, com rasgo e visão.

Dizendo que Soares esteve sempre “esteve sempre do lado certo das lutas”, o líder socialista procurou esforçadamente passar a mensagem de que o legado de Soares face à esquerda não é só o da “barragem ao comunismo” no PREC mas também o de quem, no período da troika, procurou “unir a esquerda contra uma direita radicalizada”.

Portanto, Soares não foi contraditório porque “as inflexões no seu posicionamento resultam mais dos efeitos do pêndulo da História do que de incoerências no seu pensamento”. Quer dizer: “Revelou sempre uma capacidade singular de interpretar a realidade, perceber como ninguém a relação de forças a cada momento para, com pragmatismo, tomar as decisões mais adequadas ao contexto em que vivia” e fazendo-o “com maestria” e “sem nunca pôr em causa a matriz essencial dos valores do socialismo democrático.”


PSD usa Soares contra o Chega


Também António Rodrigues, do PSD, procurou colocar Soares nas agendas atuais, fazendo o Chega o seu alvo central - e muito explicitamente invocando os incidentes do debate final do OE2025.

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Soares - disse - “estaria hoje na linha da frente do combate contra os radicalismos que assolam o nosso país e, em particular, contra todos aqueles que querem tornar este Parlamento numa mera política do espetáculo”. “Por mais tarjas que se pretendam pendurar e muros que se pretendam erguer, não devemos, nunca, dar por adquirida a luta iniciada por Mário Soares após o 25 de abril: a democracia não é um dado adquirido, constrói-se todos os dias, com todos e para todos”, afirmou ainda.

À direita, coube como se esperava ao Chega o discurso mais violento contra o fundador do PS. “Não podia estar hoje neste plenário se não deixasse claro que esta cerimónia solene [...] não deveria estar a acontecer”, afirmou André Ventura. Além de responsabilizar o homenageado por uma “descolonização desumana e mal feita”, o líder do Chega acusou-o de ter sido “cúmplice e ativista de um sistema de donos disto tudo, que se iniciou à sua sombra e se manteve à sua sombra” e em que “o espírito do PS se apoderou do aparelho do Estado”.

Do CDS, através de João Almeida, e da Iniciativa Liberal, por Rodrigo Saraiva, também se ouviram críticas ao papel de Soares na descolonização. Contudo, tanto um como outro sublinharam consensualmente o seu papel na consolidação democrática em Portugal - sendo que João Almeida procurou objetivamente atirar o fundador do PS contra o seu atual líder, “que tantas vezes cede à tentação do radicalismo e do frentismo de esquerda”, dizendo que “com Soares nunca houve maiorias construídas à esquerda do PS”.

Com mais ou menos críticas, a verdade é que a generalidade dos partidos - incluindo o Chega - assinalaram o papel de Soares a travar o PCP em 1975. Fizeram-no quase todos - e o PCP, como se esperaria, tinha o seu contra-argumentário preparado.


"Nem pai do povo, nem mito profano"


António Filipe subiu à tribuna para desdramatizar sublinhando que, apesar dos “momentos de confronto sobre os caminhos a seguir pela Revolução Portuguesa” e da “frontal discordância” quanto à Europa, a relação entre socialistas e comunistas sempre foi de “respeito mútuo” desde o tempo das lutas comuns contra a ditadura. Como não podia deixar de ser, o deputado comunista recordaria o voto do PCP a favor de Soares na 2ª volta das presidenciais de 1986, voto esse decisivo para o fundador do PS se tornar no primeiro Presidente civil eleito da democracia: “Foi a decisão acertada.”


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Já pelo Bloco de Esquerda, José Soeiro sublinharia que o percurso de Soares incluiu tantas posições e tão diversas (“aliou-se com a esquerda e opôs-se à esquerda, privatizou e criticou as privatizações, liberalizou e criticou o liberalismo, precarizou o trabalho e criticou a precariedade”) que há Soares para todos de tal modo que, como lembrou, Soares dizia que já todos tinham votado em si e contra si. Soares, disse o deputado bloquista, “merece tudo menos a condescendência da despolitização e do consenso”. Portanto, “nem pai do povo nem mito profano”, antes “republicano, socialista e laico, sim, como o próprio se definiu.”

Quanto ao Livre, que interveio através de Paulo Muacho, o esforço centrou-se em salientar a consonância da sua agenda europeísta com a de Soares, que “foi um defensor dos Estados Unidos da Europa e do federalismo europeu”. Recordando as famosas sestas de Soares, Muacho sublinhou a importância do “direito ao descanso” que o seu partido tem defendido (por exemplo na promoção da semana de quatro dias). E também puxaria o homenageado para o combate atual à ascensão do populismo racista e xenófobo afirmando que “nunca aceitaria o enxovalhar das instituições, não encolheria os ombros ao ataque a portugueses de minorias étnicas e não aceitaria que se usasse os estrangeiros como botes expiatórios”.

E assim como Muacho falou das sestas de Soares, também Inês Sousa Real falaria de outra das características de Soares recordando que tinha 12 anos e “bochechas tal e qual como tinha o Presidente na altura” quando este deu um importante contributo para a defesa do ambiente e de um combate sério ao aquecimento global” ao participar na Cimeira da Terra de 1982 (foi o único chefe de Estado que o fez).

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Quase no final da sessão, ao discursar, o presidente da Assembleia da República provocaria um sorriso em muitos deputados quando justificou a escolha da Sala do Senado - “especificamente a Sala do Senado” - para ali se instalar um busto de Soares: “Sei que ele não apreciaria especialmente a companhia de condes e duques. Mas aquela nobre sala precisa mesmo de alguém laico, republicano e até socialista. Por uma questão de equilíbrio. É o último serviço ao país que lhe pedimos.





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