Europeias 2024

Nas redes sociais, “a política tradicional perde espaço para a política das emoções”

Nas redes sociais, “a política tradicional perde espaço para a política das emoções”
TIAGO MIRANDA

A campanha para as eleições europeias está a chegar ao fim. Além dos habituais comícios, arruadas e debates televisivos, as ações dos partidos também se desenvolveram, de forma mais ou menos expressiva, nos seus canais digitais. O Expresso ouviu três especialistas sobre a utilização das redes sociais pelos partidos antes do ato eleitoral de domingo

Maria Monteiro

Jornalista

No dia 2 de junho, o Partido Socialista (PS) publicou nas redes sociais um vídeo em que a sua cabeça de lista às Eleições Europeias, Marta Temido, conta a história de uma carta que lhe foi entregue durante a pandemia pelo então primeiro-ministro, António Costa. Sentada e virada para o lado oposto da câmara, e inserida num cenário neutro, a ex-ministra da Saúde adota um registo narrativo e descerimonioso para recordar as palavras de uma mãe que, acabada de se divorciar, se vê sozinha em casa com os dois filhos, e encontra conforto nas indicações dadas diariamente pelo Governo sobre os cuidados a ter face ao coronavírus.

Este foi provavelmente o momento em que os socialistas mais se aproximaram da lógica de comunicação das redes sociais, assente em práticas e discursos guiados pela proximidade, emotividade, autenticidade e pessoalização, e consequentemente mais se afastaram dos seus habituais instrumentos de campanha nas redes sociais: vídeos e fotografias que mostram ações de rua e visitas a empresas e instituições, publicações que destacam algumas propostas do manifesto eleitoral, notas da agenda de campanha, resumos dos dias de campanha e excertos dos discursos das figuras do partido em comícios, entrevistas ou debates televisivos e posts e vídeos intrinsecamente promocionais de apelo ao voto.

Globalmente, a campanha socialista nas redes sociais manteve-se igual a si própria nas últimas semanas, focando-se largamente na transposição das atividades desenvolvidas nas ruas e nos meios de comunicação social para o campo digital e na distribuição dos mesmos conteúdos pelas diferentes plataformas. “[Os partidos convencionais] baseiam-se em dois eixos: a televisão e as feiras”, aponta Nelson Zagalo, professor de Novos Media na Universidade de Aveiro. “Esta estratégia tem mais de 30 ou 40 anos e funcionava, porque a televisão era suprassumo e, nas feiras, havia um contacto de proximidade.”

Atualmente, estes métodos não são suficientes, avalia o académico. Por um lado, “as pessoas consomem muito menos televisão” e, por outro, o conceito de proximidade transformou-se e abarca agora “aqueles que são mais acessíveis nas redes sociais”, que adotam uma postura de familiaridade e oferecem uma janela para a sua intimidade. “As pessoas não vêem o Cristiano Ronaldo só no campo ou em excertos de jogos, treinos ou prémios”, exemplifica Nelson Zagalo, equiparando estas ações “ao que PS e PSD/AD estão a fazer, não desenvolvendo conteúdos específicos para cada rede social”.

“O Cristiano mostra que tem uma família, que vive numa casa, que celebra o 25 de abril ou o 10 de junho, como todos nós, e quem está do outro lado sente que ele está descer ao nível deles”, argumenta, notando a importância das relações parassociais que o público mantém com as celebridades, como cantores ou futebolistas, e que tem de ser emulada também na política. Este espaço não tem ser criado necessariamente recorrendo à exposição da vida privada dos líderes políticos, ressalta o especialista. “Mas alguma coisa tem de ser feita para gerar proximidade, porque é muito difícil conseguir isso com um discurso abstrato centrado em ideias políticas”. “As pessoas precisam de coisas concretas, de seres humanos concretos”, salienta.

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Bugalho ausente do TikTok

Também a Aliança Democrática (AD) continua a cingir-se, praticamente, à transferência das suas ações de campanha das ruas para o online e à predominante homogeneização de conteúdos entre as várias redes sociais. A juventude de Sebastião Bugalho foi destacada pelo líder do PSD, Luís Montenegro, aquando da apresentação do cabeça de lista às Eleições Europeias, mas a diminuta presença do candidato na rede social onde está a grande maioria dos jovens, o TikTok, ilustra a ausência de uma estratégia pensada para os espaços onde se movimentam hoje os eleitores.

“Há uma certa gravitas associada aos dois maiores partidos, um sentido de seriedade, responsabilidade e maturidade, da qual eles têm dificuldades em sair, temendo afugentar os seus eleitores mais habituais”, analisa Gil Baptista Ferreira, professor coordenador no Instituto Politécnico de Coimbra e especialista em novos media e comunicação política. O académico considera que PS e PSD “parecem ainda não ter encontrado o ponto de equilíbrio para entrarem num meio onde não poderão deixar de entrar”. “A procura de um tom e de um discurso [para as redes sociais] é um risco que os leva a hesitar”, justifica.

Essa dimensão reputacional condiciona a construção de estratégias dos partidos convencionais para o online, ao contrário do que acontece com os partidos que já surgiram no mundo digital, e que muitas vezes entraram nas redes sociais e aí criaram os seus próprios discursos, linguagens e agendas políticas por necessidade, “por ser mais acessível e mais barato em relação aos meios convencionais”. “Eles não sentem esses constrangimentos, porque não têm um tipo de público anterior que tenham receio de perder”, elabora.

As arruadas e comícios, tradicionalmente formas de comunicação política “feitas para serem mediatizadas”, configuram atualmente um terreno mais seguro do que eficaz para os partidos. “No essencial, as arruadas levam atrás um conjunto de convertidos”, explica Gil Baptista Ferreira, acrescentando que estas ações “têm um efeito em si mesmas, enquanto fenómeno, que é residual a nível de resultados eleitorais”. “A sua mediatização é que tem essa eficácia”, reitera. Por isso, as ações de campanha tradicionais têm de passar a “conviver com uma comunicação não mediatizada produzida de forma estratégica”.

Também nas redes sociais os partidos mais antigos parecem dirigir-se primordialmente à militância. Olhando ao Facebook do PSD, por exemplo, é frequente a transmissão de comícios ou outros encontros do partido, como almoços e jantares, que posteriormente ficam publicados naquela rede social sob a forma de um vídeo de cerca de 40 minutos. “Eles acabam por falar para a bolha, a quem está interessado em assistir, porque hoje ninguém assiste um vídeo tão longo”, afirma Sergio Denicoli, investigador da Universidade do Minho e especialista em redes sociais e comunicação digital. “Mais importante do que publicar os vídeos, seria editá-los para torná-lo adequado às redes, trabalhar o conteúdo para torná-lo mais simples”, sustenta.

Na era da “economia da atenção” – termo cunhado nos anos 1970 pelo economista, psicólogo e cientista político Herbert Simon, e que carateriza a capacidade de atenção como um bem escasso e uma mercadoria que pode ser capitalizada –, “a comunicação política de muitos partidos segue uma lógica quase jornalística e deveria seguir uma lógica mais publicitária”, indica o académico, sublinhando a necessidade de se “captar a atenção das pessoas num ambiente em que tanta informação está sendo produzida ao mesmo tempo”. O TikTok apresenta-se como o espelho absoluto desta dinâmica, refere. “Você tem que prender a atenção da pessoa em três segundos, senão ela já está em outro vídeo.”

Para Sergio Denicoli, além das dificuldades em ultrapassar “o discurso institucional e aprofundado que é menos eficaz em termos de convencer pessoas”, os partidos convencionais “não conseguem acompanhar o ritmo da atualidade e das trends [assuntos mais falados]” e transformá-los em discurso político para o digital. No seu entender, esse problema pode explicar-se pela “antiguidade [dos partidos], pelas relações internas mais complexas e acirradas e pelas lideranças não tão concentradas [como a de partidos que conseguem melhores resultados nas redes sociais]”. “Nestes casos, os partidos focam-se numa mensagem que vai agradar a esses grupos todos”, nota o investigador.

A política baseada nas emoções

As especificidades das redes sociais, cuja “comunicação é marcada pela dimensão emocional que, nomeadamente, aumenta o potencial viral [dos conteúdos]” favorece determinado tipo de partidos políticos “que rompem com aquilo que era o discurso político convencional”, pressupõe Gil Baptista Ferreira. O especialista reconhece que “a política à moda antiga, racional, com argumentos que têm como referência a verdade, vai perdendo espaço de forma galopante para a política baseada nas emoções, que é a política própria das redes sociais”. Nestes partidos, predomina “um estilo de denúncia marcado pela indignação e pela injustiça”.

É neste contexto que se enquadra o Chega, o campeão das redes sociais no panorama político nacional. “Nunca tinha visto um político tão português até aparecer o grande Ventura”, lê-se no comentário de um internauta a uma fotografia em que o líder do partido aparece ajoelhado a rezar numa igreja, com a legenda: “Mesmo no meio da campanha eleitoral, tive algum tempo para me reencontrar com Deus. Ainda bem!”. “Esta é uma técnica de comunicação muito centrada numa figura, a do líder, [que aparece como alguém com quem nos identificamos]”, resume o investigador do Politécnico de Coimbra.

Durante a campanha para as europeias, André Ventura tem continuado a ser o rosto predominante nas redes sociais do Chega em relação à do cabeça delista do partido, António Tânger-Corrêa. A par dos conteúdos mais informativos, com discursos, propostas e notas de agenda, vemos Ventura conduzir jogos como um “Quem é quem?" onde ataca os candidatos socialistas. Vemo-lo cabecear uma bola de futebol junto à escola onde estudou, em Algueirão-Mem Martins, e a falar diretamente para a câmara, respondendo a perguntas de utilizadores das redes sociais – tarefa também assumida por outros dirigentes como Rita Matias e Pedro Pinto. “É uma campanha extremamente bem organizada, com uma máquina muito oleada e muito tempo [de planeamento]”, descreve Nelson Zagalo.

Além disso, o Chega opta por “um discurso muito informal e próximo do que as pessoas têm num café quando ninguém as ouve”, segundo o professor da Universidade de Aveiro. Acresce que a sua estratégia “está muito colada a eventos do dia-a-dia”. Impressão partilhada por Sergio Denicoli, que observou, no decorrer da campanha, “um foco maior nos problemas nacionais do que nos problemas europeus, como a imigração, o combate à corrupção e às grandes empresas que se aproveitam dos fundos europeus”. “É uma estratégia que aproxima o eleitor de uma eleição que geralmente é muito distante dele”, afirma o especialista. “As pessoas entendem-no muito mais rapidamente.”

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Usar o humor e a ironia

O recurso ao humor e à ironia é outra das armas usadas pelo Chega, como no vídeo em que um papagaio diz “Vota Chega” ou no que mostra Ventura a tirar do bolso uma fotografia de Ana Catarina Mendes, ex-ministra dos Assuntos Parlamentares e atual candidata às europeias, que diz ter consigo para não se esquecer de quem é “a grande responsável pelo caos da imigração no nosso país”. “Existe uma ‘cartoonização’ da comunicação política que consegue chegar mais facilmente ao cidadão comum”, declara Sergio Denicoli.

A par disso, as publicações do Chega centram-se, muitas vezes, noutras figuras políticas da oposição de cujos deslizes almejam tirar partido. “Qualquer publicação que tenha um tom acusador em vez de propositor é boa para obter reações e tornar-se viral”, garante Gil Baptista Ferreira. Por outro lado, a própria estrutura das redes sociais beneficia o partido, já que “as mensagens são levadas a pessoas que têm uma predisposição para acolhê-las”. O alcance é ainda mais amplificado pelas “dezenas ou centenas de contas falsas que não têm relação direta com o partido, mas trabalham com esse objetivo”, comenta Nelson Zagalo. “Isto funciona como o restaurante vazio e o restaurante cheio: no restaurante cheio toda a gente quer entrar, no vazio não.”

Também a Iniciativa Liberal (IL) sobressai nas redes sociais, com conteúdos que juntam descontração, humor e interatividade, a par das publicações da praxe sobre ações de rua e agenda. Um dos vídeos mais recentes mostrava João Cotrim de Figueiredo, cabeça de lista dos liberais às europeias, a falar várias línguas europeias enquanto realizava determinada tarefa, como grelhar uma salsicha frankfurt ou comer um croissant. Outro mostrava Cotrim em diversos eventos antes de eles acontecerem, como na Feira do Livro ou no Nos Alive, com o intuito de promover o voto antecipado. “[Em relação aos partidos tradicionais], a IL é tem um propósito muito claro e abrange uma franja com que parece estar satisfeita, o que torna a comunicação mais fácil”, deduz Sergio Denicoli.

No meio ficam partidos como Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP), PAN – Pessoas, Animais, Natureza e Livre, que se situam algures entre a transposição de conteúdos das ações de rua e das suas atividades partidárias e parlamentares e a conceção de conteúdos mais criativos que apelem à participação dos utilizadores. O BE, por exemplo, fez recentemente uma publicação, através dos Jovens do Bloco, com um “Direitinder”, que pega no modelo da aplicação de encontros e mostra os diferentes líderes europeus de direita radical que podem chegar ao Parlamento Europeu; o PCP divulgou ultimamente o quiz “sabes mesmo tudo sobre a UE?”; o PAN mostrou o líder a chegar de bicicleta a um debate ao som da música Shake it Off, de Taylor Swift; o Livre centrou-se sobretudo na comunicação de ações de campanha, discursos e propostas.

“Há partidos que existem nas redes sociais porque não podiam deixar de existir, mas que, ou por insuficiência de recursos ou por razões que têm a ver com a própria imagem do partido, são pouco impactantes”, sintetiza Gil Baptista Ferreira. Para poderem ganhar espaço nas redes sociais, os partidos devem “monitorizar e acompanhar tudo o que acontece em tempo real, entender do que se está a falar e o que se quer ouvir e, através da linguagem adequada, aproximar o conteúdo das ideias que querem difundir”, enumera Sergio Denicoli. “A comunicação política pode ser séria sem ser sisuda.”

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