Da reunião da brigada do reumático ao golpe falhado do 16 de março de 1974
Os militares da brigada do reumático afiançaram fidelidade ao regime do Estado Novo e prometeram defender a política ultramarina da nação. Marcello Caetano retribuiu com um discurso, empossou novos governantes e, na madrugada de sábado, dia 16, uma coluna do Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha com perto de 200 militares iniciou uma marcha para Lisboa com o propósito de derrubar o poder. A revolta, intentona ou golpe das Caldas acabou em menos de 20 horas, mas é a prova cabal de que nos primeiros meses de 1974 Portugal vivia em permanente conspiração. A ditadura cairia de madrugada, 39 dias depois, abrindo caminho ao fim da Guerra Colonial e à democracia
O golpe falhado do 16 de março começou na quinta-feira anterior quando os oficiais generais dos três ramos das Forças Armadas – simbolicamente conhecidos por brigada do reumático – se reuniram na cerimónia de homenagem ao Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, no Palácio de São Bento, no dia 14 de Março de 1974.
Esses oficiais ainda não eram velhos e, provavelmente, ainda nenhum sofreria de reumático. A cerimónia decorreu com a solenidade da praxe, foi notícia de primeira página nos jornais do dia seguinte que destacaram o discurso do chefe do Governo e do general Paiva Brandão, porta-voz do grupo e Chefe de Estado-Maior do Exército.
Brandão invocou a prerrogativa de ser o mais antigo dos Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, e começou por afirmar: “As Forças Armadas não fazem política mas é seu imperioso dever, e também da nossa ética, cumprir a missão que nos foi determinada pelo Governo legalmente constituído”. O discurso continuou, mas Paiva Brandão equivocou-se na mensagem que transmitiu: As Forças Armadas andavam mesmo a fazer política.
Kaúlza de Arriaga conspirava com os ultras, os capitães conspiravam e teciam o movimento que fez o 25 de Abril de 1974, Spínola conspirava com os spinolistas, e deliberadamente decidiu faltar – juntamente com Costa Gomes – ao beija-mão de fidelidade de quinta-feira, 14 março.
A falta foi punida, e os prestigiados generais Francisco da Costa Gomes e António Sebastião Ribeiro de Spínola foram exonerados dos cargos Chefe e vice-Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas.
Diário de Lisboa de sexta-feira, 15 de março de 1974
Fundação Mário Soares
Marcello Caetano ouviu o discurso de Paiva Brandão e dirigiu-se aos militares (e ao país, já que as suas palavras chegaram aos jornais) para dizer aos oficiais presentes (e aos ausentes): “Os sacrifícios que hoje se lhes exigem em África são pesados, sem dúvida. Mas encadeiam-se numa ação secular em que o País sempre ficou devedor da sua grandeza e projeção ao esforço dos seus soldados.”.
"Consequências da crise de energia não cessaram"
Enquanto os militares oscilavam entre a vassalagem e a conspiração, a vida dos portugueses seguia com os preços a aumentar. A inflação disparava, e Marcello Caetano conhecia os riscos da escalada de preços.
O chefe de Governo aproveitou a posse do novo ministro de Estado, Mário de Oliveira (e de oito outros governantes) para afirmar – “temos de lutar contra a inflação: mas nos tempos mais próximos teremos de nos resignar a ver aumentar alguns preços. As consequências da crise de energia não cessaram (…).”
Do outro lado do Atlântico, o Presidente dos Estados Unidos Richard Nixon deu “um grande murro na mesa, o menos diplomaticamente possível, para – segundo os observadores – acertar o passo dos aliados europeus ou para criar entre eles dissenções tais que permitam uma fácil imposição da vontade dos Estados Unidos”, noticiou o vespertino Diário de Lisboa na primeira pagina de dia 16 março, sem fazer qualquer referência à tentativa de insurreição militar dessa madrugada.
Primeira página do Diário de Lisboa de 16 de março de 1974 fala da remodelação do Governo e da inflação
Fundação Mário Soares
No domingo dia 17, o vespertino A Capital reportava os acontecimentos de sábado, e informava que “a rendição dos militares insurrectos do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, pôs termo ao fim da noite de ontem a um período de grande tensão que durou cerca de 20 horas e foi percorrido por vários acontecimentos que envolveram autoridades militares”, que travaram a intentona às portas de Lisboa.
Spinolistas comandam marcha
A saída das Caldas ocorreu três semanas depois de ser posto à venda o livro de António de Spínola “Portugal e o Futuro”, o sonho de qualquer autor: 50 mil exemplares vendidos entre as 9h e as 15h no dia em que foi posto à venda (dados da livraria do Apolo 70, em Lisboa) grande procura em todo o país, 230 mil cópias editadas em oito meses com 20% de direitos de autor previamente negociados pelo irmão do general.
Mais importante do que o sucesso editorial, o livro sublevou o pensamento dos milhares de pessoas que o leram, porque questionava a Guerra Colonial e propunha uma solução não militar para o conflito, que implicava a criação de uma federação política de Estados lusíadas. E essa sublevação de pensamento esperançado fez com que a ausência de Spínola da cerimónia da brigada do reumático no dia 14 de março, provocasse um enorme alvoroço junto dos militares que o viam como líder. Ou melhor, o alvoroço foi tanto que lhes atiçou a vontade de agir, criando condições para um golpe que afastasse Caetano do poder e resolvesse as reivindicações dos capitães.
O golpe falhado do 16 de março foi obra dos spinolistas “para se anteciparem”, garante ao Expresso o capitão de Abril Carlos Matos Gomes. Esta visão é partilhada pelo biógrafo de Spínola, o professor catedrático Luís Nuno Rodrigues, para quem o golpe falhado de 16 de março “foi uma tentativa conduzida por oficiais do Movimento das Forças Armadas (MFA) afetos ao general Spínola”.
A Capital de domingo 17 de março, um dia depois da falhada tentativa do golpe das Caldas
Arquivo Impresa
O 25 de Abril de 1974 teria ocorrido com ou sem 16 de março. Matos Gomes separa as águas entre capitães e spinolistas do 16 de março, apesar de estes últimos terem (quase) todos convergido e desaguado no Movimento das Forças Armadas.
João Céu e Silva, autor do livro “o General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos Capitães”, lembra que Otelo Saraiva de Carvalho “era o único elemento comum aos dois grupos" e que o próprio Melo Antunes – um dos incontestados estrategas do MFA – fez saber que se afastaria se Otelo não preparasse os planos da revolução com detalhe e segurança, o que viria a acontecer com a revisão de planos e confirmações de segurança.
Página 2, da primeira edição do Expresso depois da tentativa do golpe das Caldas
Arquivo Expresso
O Expresso, na sua primeira edição depois da intentona, publicou o artigo intitulado “Cronologia de acontecimentos” onde mencionava “um movimento de caraterísticas e finalidades mal definidas". O relato prosseguia lembrando que "o incidente ficou assim sanado em termos estritamente militares por volta das 16h30, pondo assim termo à manifestação que trouxe a coluna militar até às portas de Lisboa”.
Os detidos foram muitos, a imprensa mencionou 200, uma nota oficial anunciou 33, a Pide acreditou que tinha a situação sob controle, e a preparação do 25 de Abril seguiu a malha de contactos e planos estabelecidos desde a Guiné a Moçambique. Meses antes, no dia 9 de setembro de 1973, parte dos militares que fizeram o 25 de Abril, tinham tido um momento importante na Metrópole com a organização de uma reunião num monte em Alcáçovas, onde compareceram “136 oficiais de todas as armas e serviços das Forças Armadas, em reação aos decretos-leis n.º 353/73 e 409/73. A maioria dos presentes decide continuar a contestar os citados decretos, juntando-se a 51 oficiais a prestar serviço na Guiné-Bissau e a 97 a prestar serviço em Angola”.
Esta é a crónica que foi escrita pela imprensa portuguesa nesses dias agitados de março de 1974, em que a brigada do reumático lutava por fazer prevalecer as suas ideias anquilosadas, os Estados Unidos exigiam a retirada total de Israel dos Montes Golan, a Arábia Saudita pedia aos produtores de petróleo que pusessem termo ao embargo contra a América do Norte, e a União Soviética falhava um poiso em Marte, como nos informa a primeira página do Diário de Lisboa de dia 16. Do outro lado do Atlântico, Ernesto Geisel tomava posse como quarto Presidente da ditadura militar brasileira. O destino dos imigrantes portugueses na República Federal da Alemanha era motivo de preocupação, depois de a Federação das Indústrias Alemãs considerar “indesejável o aumento do número de trabalhadores estrangeiros na RFA” que, no total de nacionalidades, já representavam mais de dez por cento da obra do país.