Política

Marcelo despede-se de Costa a apontar para convergências: "Sem compromissos, há desafios impossíveis de vencer"

Marcelo despede-se de Costa a apontar para convergências: "Sem compromissos, há desafios impossíveis de vencer"
NUNO BOTELHO

Na despedida da dupla Costa/Marcelo, em Belém, Presidente admite que achava que primeiro-ministro ia manter-se até às autárquicas (pelo menos), não faz referências ao processo judicial e antevê regresso de Costa à política mais cedo do que tarde. Prevendo anos políticos de elevada instabilidade, Costa sugere que não imitará outros ex-primeiros-ministros, como Cavaco ou Passos, mas disponibiliza-se para dar doses suplementares de otimismo a Marcelo nos próximos anos - se precisar

Marcelo despede-se de Costa a apontar para convergências: "Sem compromissos, há desafios impossíveis de vencer"

Rita Dinis

Jornalista

António Costa está de saída e Marcelo Rebelo de Sousa terá de coabitar com a solução governativa que vier a seguir. Com as sondagens a mostrar um panorama político fraturado, o Presidente da República sabe que poderá passar os seus últimos anos de mandato a braços com “mini-ciclos” e com um governo minoritário, onde a estabilidade dificilmente estará garantida. Este revés na história – Marcelo disse estar “convencido” de que iria bater o “record” de manter a coabitação com um só primeiro-ministro – poderá ter levado o chefe de Estado a aproveitar os cumprimentos de Natal ao Governo para deixar uma mensagem a quem suceder ao primeiro-ministro: é preciso “compromissos” e “boas relações institucionais”, independentemente do “hemisfério político”, para superar os “desafios” que vão surgindo no país.

Como exemplo disso, Marcelo Rebelo de Sousa utilizou os oito anos de trabalho ao lado de António Costa, dos quais guarda uma “boa recordação”. “Houve nestes oito anos, além de uma relação pessoal antiga sempre boa, uma relação institucional sempre boa, mesmo com divergências políticas”, disse. Apesar destas “divergências”, o Presidente destacou a forma como se respeitou a “vontade dos portugueses” nas urnas e se colocou o país em primeiro lugar. “Cada um pensava o que pensava, mas procurava compromissos. Se não houvesse este esforço de compromisso, haveria desafios impossíveis de vencer”, continuou o Presidente referindo-se a alturas difíceis para o país como os anos de pandemia.
“Pesquisei e não encontrei no século XXI um exemplo de semipresidencialismo tão pacífico, nem na Europa, nem mesmo nos nossos irmãos de língua portuguesa”, resumiu. Este balanço acontece depois do trabalho de “consolidação do sistema bancário” em 2016, do “período doloroso dos fogos” de 2017, ou da “violentação” causada por dois confinamentos em 2020 e 2021 com a pandemia. Também aqui surge um elogio a António Costa e ao seu executivo: "Cinco vezes os portugueses sufragaram em locais, europeias e legislativas, o essencial da fórmula governativa existente, o que em democracia não é irrelevante”.
António Costa não poderia estar mais de acordo. Quando Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente da República, em 2016, António Costa já era primeiro-ministro há cerca de um ano. De lá para cá, a dupla foi sempre a mesma e, agora, na reta final das despedidas, Costa procurou tranquilizar o Presidente relativamente aos anos incertos que aí vêm: “ Sei que nunca experimentou presidir com outro primeiro-ministro, mas posso-lhe assegurar que nos habituamos, mesmo com estilos bastante diversos. Vai-se habituar e vai correr bem”, disse um António Costa que se assumiu como “otimista em relação ao futuro” eleitoral que o país tem no horizonte.

Depois de muitos elogios mútuos (com mais ou menos ironia), Costa disse mesmo que acredita que os portugueses vão recordar esta dupla como “um dos melhores períodos de relacionamento entre órgãos de soberania” da história. Marcelo, mais velho e mais experiente, saberá melhor, mas Costa “duvida” de que por mais que procure na memória não haverá igual - sobretudo sendo ambos de “famílias políticas diversas”.

Depois de já ter lançado António Costa para a presidência do Conselho Europeu e até para as presidenciais de 2026 (apesar de Costa sempre ter rejeitado uma candidatura a Belém), Marcelo Rebelo de Sousa voltou a antecipar o regresso do primeiro-ministro à política num futuro próximo. “O primeiro-ministro esquecer-se da política é impossível. Profetizo que o primeiro-ministro mais rapidamente estará a braços com essa sua vocação natural do que eu estarei no futuro quando me puder lançar em causas sociais e educativas em que haja o menos possível de recordação da política”, atirou o Presidente da República na apresentação de cumprimentos de Boas Festas do Governo, esta quinta-feira. Ao mesmo tempo, afastou ainda as possibilidades do seu próprio regresso à política depois de 2026.

Perto do fim do discurso – que admitiu ser “longo e enfadonho” por ter atravessado os oito anos de coabitação com Costa –, o chefe de Estado disse que “estava convencido” de que o primeiro-ministro iria manter funções “durante mais um tempo”, mas não até ao fim da legislatura. Segundo a “fórmula” do presidente da República, António Costa ficaria mais “um ano e dez meses”, ou seja, até à data das eleições autárquicas, altura em que iriam “aparecer na cena política um conjunto de candidatos à sua sucessão”.
Por outro lado, também neste timing surgiria “uma série de eleições que implicavam o final do mandato parlamentar sobre o qual depois [António Costa] ponderaria o que faria ou não faria”, disse Marcelo numa possível alusão a cargos europeus pelos quais o primeiro-ministro poderia trocar o governo português. “Não quis o destino que fosse assim. Achei que ia ter o record de ter o mesmo primeiro-ministro durante dez anos, mas a vida é assim”, acrescentou sem nunca tocar na ferida da investigação Influencer que causou a demissão do chefe de Governo.
NUNO BOTELHO

Costa deseja que mandato de Marcelo vá até ao fim e com popularidade intacta

Antes de Marcelo, já António Costa tinha, com alguma ironia, deixado votos para que o Presidente da República viesse a cumprir o mandato até ao fim - e com a popularidade mais ou menos intacta. “Desejo que haja muitas venturas e poucas desventuras, e que o seu mandato continue a correr até ao fim, da forma como os portugueses tão bem apreciaram no seu primeiro mandato e têm também apreciado no segundo. Só posso desejar que corra bem do ponto de vista pessoal, para si, e para nós enquanto país”, disse.

Na cabeça de todos está o cenário de instabilidade que se avizinha no próximo ciclo político, e o poder que Marcelo terá na definição do novo xadrez. António Costa, e a generalidade dos socialistas, tem deixado sempre no ar a ideia de que a responsabilidade da dissolução da Assembleia da República e da convocação de eleições é de Marcelo, e não do primeiro-ministro que se demitiu. Sacudindo essa responsabilidade de si próprio, e ciente de que ela vai recair sobre o Presidente da República, Costa mostrou-se disponível para conversar com Marcelo - “por telefone ou pessoalmente” -, se, durante esse período conturbado, precisar de “um suplemento de otimismo” caso a fé católica do Presidente não seja suficiente.

Ainda assim, Costa garantiu que não irá “imitar” outros ex-primeiros-ministros, não referindo quais, sugerindo que não irá fazer sombra a quem vier a seguir. Ainda esta semana, Pedro Passos Coelho reapareceu a deixar duros recados a António Costa ("saiu por indecente e má figura"), e Cavaco Silva foi a estrela do congresso do PSD no mês passado.

“Entre nós, temos uma diferença profunda que não conseguimos ultrapassar - e bem se esforçou, mas não me conseguiu conquistar para o privilégio da fé. Mas quem não o tem, tem de ter uma dose suplementar de confiança para enfrentar as desventuras. Uma coisa posso-lhe assegurar: eu, como ex-PM, não imitarei os que também não imitei como PM, mas poderá sempre contar com toda a minha disponibilidade, ao telefone ou pessoalmente, para acrescentar um suplemento de otimismo quando a fé não lhe for suficiente”, disse.

No final, e na despedida depois de oito anos de coabitação, Costa desejou a Marcelo um “ótimo ano de 2024”, assim como um “ótimo ano de 2025”, e, por fim, uma referência ao ano de 2026 - ano em que Marcelo termina o mandato e em que há eleições para a Presidência da República. “Em 2026, cá nos reencontramos”, disse, obrigando-se depois a explicar a referência. O reencontro será do lado de fora da política, e não dentro. “Há mais vida para além da Presidência da República”, disse, entre risos. E há mais vida para além da política?

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