Mozart contra Salieri no aniversário do PS: Costa elege combate à corrupção e ao populismo como armas contra "a inveja da direita"
TIAGO MIRANDA
“Hoje não há ditadura, mas há um populismo que temos de combater”, disse António Costa nos 50 anos do PS, avisando os socialistas de que haverá sempre uma guerra a combater com os mesmos valores de sempre. Fugindo às críticas, o secretário-geral socialista defendeu legado dos ex-líderes (apenas dois estiveram presentes), chamou a si as contas certas em defesa do Estado social, mencionou uma herança de Sócrates e elogiou primeira maioria absoluta do PS que foi de…Ferro.
Reza a lenda, ou a história, que Antonio Salieri era, nos idos do século XVIII, o compositor oficial da corte austríaca invejoso do inegável talento musical do contemporâneo Amadeus Mozart. O génio Mozart tinha as ideias e o dom, Inovou, foi popular e ficou na história. Salieri tinha a corte, as elites, o prestígio e… a inveja. Hoje são muitos mais os que sabem quem foi Mozart do que os que conhecem Salieri e ainda menos os que saberão que até chegaram a colaborar. “Não há partido político sem ideias e a questão principal que um partido tem de definir é a sua linha política, para depois congregar, sintetizar e traçar a estratégia a seguir”. Jaime Gama, fundador do PS, ex-presidente do Parlamento, falava no palco do Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, na celebração dos 50 anos do Partido Socialista e pegava na analogia musical para deixar um conselho aos socialistas: “Além dos intérpretes e dos assistentes, um partido tem sempre um compositor e o meu desejo, no dia de aniversário do PS, é que permaneçamos sempre do lado do Mozart para não cairmos no lado do Salieri”. “E que nos ajude a sorte”, desejou.
António Costa, na mesa comprida central, ouvia com atenção. Estava de gravata - vermelha -, contrariando a regra não escrita a que costuma recorrer para separar a sua presença na vida pública enquanto primeiro-ministro (com gravata) da sua presença enquanto secretário-geral do partido (sem gravata), mas a ocasião histórica assim o impunha. E quando subiu ao palco, já depois de os convidados internacionais Felipe González, histórico líder do Partido Socialista Obrero espanhol (PSOE) e Olaf Scholz, atual chanceler alemão, terem elogiado a liderança “progressista” do PS e aconselhado os socialistas a manterem o foco nos princípios de sempre mesmo quando as lutas são outras, António Costa recorreu à história do partido e aos feitos dos seus líderes (“de Mário Soares a António José Seguro”, passando por José Sócrates no elogio à criação do complemento solidário para idosos) para vincar que o PS não se confunde com o Governo e para identificar os principais desafios do futuro: defender a democracia combatendo a corrupção, combater o populismo (a “nova guerra”) e trazer a geração mais nova, que é “a maior riqueza que o país tem”, para a luta de ajudar Portugal dar o “salto” que ainda precisa de dar.
“Estes senhores não fundaram o PS há 50 anos porque sabiam que hoje estaríamos no governo com maioria absoluta, fundaram porque havia ideais e causas pelas quais valia a pena bater”, começou por dizer o secretário-geral socialista sublinhando que “o PS não existe só quando está no Governo”, ou quando governa nas câmaras ou nas regiões autónomas. “Existe enquanto existirem socialistas e ideais pelos quais temos de nos bater”, afirmou, procurando responder às críticas de “degradação” das instituições ou de confusão de Estado com partido que têm sido audíveis, inclusive de históricos militantes socialistas.
Um deles foi António Campos, o histórico socialista que foi braço direito de Mário Soares, que publicou esta quarta-feira uma carta aberta a criticar o distanciamento do PS dos seus valores fundacionais e a acusar o PS de ter “criado” o monstro do Chega. António Costa não ignoraria a carta, apesar de ter ignorado a crítica. “António Campos escreveu uma carta, que eu fui autorizado a citar em partes, e diz nessa carta que Jaime Gama foi escolhido pelos militantes do PS do interior como secretário-geral do interior, antes da fundação do partido”, disse, elogiando a máquina que Gama criou na altura, na clandestinidade, que viria a ser a base da implantação do PS no território. Mas foi a única alusão, por alto e à volta, que fez às críticas que tem ouvido a propósito do alegado fechamento do PS no núcleo do governo e da pouca discussão que alguns acusam ter-se instalado no PS.
TIAGO MIRANDA
À semelhança do que tinha dito Felipe González, Costa deixou claro que o PS tem de ir acompanhando todas as mudanças do mundo, e mesmo que recorra a novas ferramentas, tem de recorrer aos mesmos valores para enfrentar as novas lutas. “Hoje a guerra pode ser outra, temos de ter uma nova trincheira, mas vamos ter sempre uma guerra na frente para travar.Hoje não há ditadura, mas há um populismo que temos de combater. Hoje eliminamos muitas das desigualdades que existiam mas temos de dizer a todos que não vamos deixar ninguém para trás, porque somos o Partido Socialista da solidariedade que não deixa ninguém para trás”, disse, chamando os “jovens” e a “geração que é a maior riqueza que o país tem” a essa luta.
E as novas lutas são várias: da corrupção ao enfraquecimento da democracia e ao surgimento dos populismos, passando pelo “maior desafio” de todos que é pegar nas gerações mais qualificadas de sempre (os mais jovens) e trazê-los para a luta pelo desenvolvimento económico - o “salto” que Portugal ainda não deu mas que tem de se manter focado, com os olhos na meta, para vir a dar. É a nova geração que, diz, “permitirá dar o salto que o país ainda precisa de dar para se aproximar dos estados mais desenvolvidos da UE”.
Defender o legado, deixar a marca das contas certas e relembrar (ou reescrever) a história da primeira maioria
“Para defender a democracia é essencial combater a corrupção”, disse António Costa, defendendo o legado dos vários ex-ministros e ex-governantes socialistas neste campeonato, da blindagem do Ministério Público por Almeida Santos, passando pelas leis de combate à corrupção aprovadas por Guterres e culminando nas suas próprias leis de reforço dos meios das polícias.
O combate às desigualdades é outra parte do legado que Costa quis sublinhar. “Os socialistas nasceram para defender a liberdade e a democracia e com isso combater as desigualdades, e esse combate às desigualdades é um contínuo”, disse, referindo-se aí pela primeira vez a uma medida de José Sócrates, o ex-líder mais ausente da festa, tendo sido responsável pela criação do Complemento Solidário para Idosos depois da criação do rendimento mínimo garantido.
TIAGO MIRANDA
Antes, contudo, António Costa tinha lembrado a “primeira maioria absoluta” da história do PS, e essa, todos sabem, é uma medalha de José Sócrates. Mas não foi a essa maioria, na Assembleia da República, que Costa se referiu quando enalteceu o feito de Eduardo Ferro Rodrigues por ter sido debaixo da sua alçada que o PS conseguiu pela primeira vez a maioria absoluta dos votos numas europeias, em 2004. “Foi com Ferro Rodrigues que o PS teve a primeira maioria absoluta da sua história nas Europeias de 2004, quando infligimos uma monumental derrota à direita”, disse, com a plateia a aplaudir.
Uma viagem pela história que Costa usou para deixar claro que é a esse legado que está a dar seguimento, tanto nas prestações sociais (ou no aumento das reformas anunciado esta semana, como lembrou Carlos César) como na continuidade da “paixão” de Guterres pelas políticas de educação ou no legado de António Arnaut com a criação do SNS. Mas a marca que o atual líder socialista mais quer deixar, para ficar escrita na história, é juntar a esse legado, outro: o das contas certas. “Porque sempre que as contas não estão certas, o primeiro a sofrer é o Estado social e quem dele depende”, disse.
A meta continua a ser a mesma: chegar aos níveis de desenvolvimento que os países mais desenvolvidos têm, e não estar preocupado, como a “direita que tem a inveja no ADN” está, com o facto de outros países atrás de Portugal estarem a desenvolver-se também. Sem a inveja de Salieri, e com alguns rostos socialistas ausentes da festa (incluindo o aspirante a Mozart Pedro Nuno Santos), Costa precisará de um pouco de “sorte” para cortar a meta, vaticinaria o fundador Jaime Gama.
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