“Mas eu sou obrigado a responder?”, questionou André Martins, presidente da autarquia de Setúbal em reunião da Câmara, esta quarta-feira, depois de sucessivamente questionado pelos vereadores do PSD, Fernando Negrão e Sónia Martins, e por Fernando José, do PS. “Claro que tem essa obrigação de responder a Setúbal e aos setubalenses: foi ou não aberta uma auditoria urgente e não programada, pelo novo encarregado da proteção de dados?”, atirou o vereador socialista, sem sucesso. O autarca dos Verdes, eleito nas listas da CDU, chegou a admitir que o nome da cidade estava “enlameado”, mas não deu qualquer resposta sobre a polémica dos ucranianos recebidos em Setúbal por um casal de russos, da associação Edintsvo, com ligações ao Kremlin. Nem uma resposta.
André Martins limitou-se a fazer uma intervenção inicial em que enumerou uma cronologia dos acontecimentos e das reações políticas sobre o caso, até referir os inquéritos anunciados pelo Governo, fosse pela Inspeção-Geral das Finanças ou pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). De resto, disse ter sido informado “formalmente”, na manhã desta quarta-feira, 4 de maio, “por uma destas entidades” mas sem revelar qual, “que se iriam iniciar, em breve, diligências nesta autarquia para apuramento de factos relacionados com o funcionamento dos serviços da CMS em matéria de acolhimento de refugiados”. No fim do discurso, avisou que não ia responder a perguntas sobre a polémica relevada na edição semanal do Expresso de 29 de abril.
Considerando a “comunicação” do início do inquérito, o presidente da Câmara recusou-se a fazer qualquer comentário: “Entendemos que, a partir deste momento e até à conclusão destas diligências, deveremos evitar voltar a comentar publicamente este assunto”.
Fernando Negrão, vereador e deputado do PSD na Assembleia da República, começou por insistir que, não falando em Setúbal, teria de falar no Parlamento, na comissão de direitos, liberdades e garantias, onde os deputados o querem ouvir. “Se não discutimos isto, por que razão estamos aqui?”, questionou o social-democrata. E lançou uma lista de perguntas, que não tiveram resposta, apelando a que o autarca respondesse porque “a discussão vai continuar noutros sítios”. A lista de perguntas por responder (não todas) é esta:
- Quando teve conhecimento da existência da Associação Edintsvo?
- Que tipo de contratualização foi existindo ao longo dos anos?
- Consta que despendeu cerca de €90 mil em subsídios anuais: a que título e com que fim? É incomum no movimento associativo verbas deste montante.
- Era do seu conhecimento que tinha uma ligação a entidades estrangeiras e à Rússia?
- Sabia que teve durante anos um protocolo com o IEFP?
- No acolhimento dos ucranianos, havia contactos com o IEFP?
- O responsáveis pela associação, Igor Khashin e a mulher, terão fotocopiado documentos de identificação de refugiados?
- Esses documentos e as perguntas envolviam elementos sobre ucranianos que ficaram no seu país?
- Qual a tramitação desses documentos e dados pessoais?
- Porque é que só agora o município nomeou o responsável pelos dados pessoais [depois de uma notícia do Expresso]?
- Nunca teve o bom senso de assinalar que não fazia qualquer sentido cidadãos russos receberem cidadãos ucranianos em tempo de guerra?
Sónia Martins, também do PSD, havia de elencar mais uma série de questões que ficaram por responder, como, por exemplo: porque nada foi feito depois de uma reunião com a Associação Solidária Anjos da Misericórdia, que reportou o problema a 8 de abril e porque não o fez após a entrevista da embaixadora ucraniana, ou mesmo depois de ter sido questionado em reunião de Câmara, no dia 20 de abril sobre o assunto? Sem resposta. A intervenção da social-democrata, acabou por evidenciar uma dissonância entre os dois vereadores laranja. Sónia Martins disse que, a “confirmar-se” tudo o que tem sido dito, o “presidente da Câmara e o Executivo têm de se demitir”. Esta terça-feira, o PSD fez um repto ao PS nesse sentido, mas Negrão, numa entrevista à SIC, não estava alinhado com a estrutura local do partido, pelo menos antes de os factos serem apurados.
Quanto ao vereador socialista Fernando José, ainda perguntou o que estava a fazer Igor Khasin no gabinete de acolhimento, na presença dos refugiados ucranianos, uma vez que agora não é ele o presidente da Edintsvo, mas a sua mulher Yulia Khashina, também funcionária da Câmara. “Tem de responder o que estava a Igor a fazer… Tem de responder!”. Não respondeu. “Tem de responder aqui se os dados saíram ou não da autarquia? Está obrigado? Claro que está obrigado”, disse o vereador que também é deputado à Assembleia da República.
André Martins encerrou o assunto com cinismo: “Não disse para os senhores não falarem sobre o assunto, mas como fui informado que uma destas entidades vai imediatamente iniciar o inquérito, evitarei ter declarações sobre o assunto. Não disse que os senhores vereadores não podiam falar disso”.
O presidente da Câmara diz que as perguntas colocadas “são questões a que o inquérito dará resposta”. Mas mencionou também “especulações”, o que terá a ver com a relação de Igor Khashin com o Kremlin ou os serviços de informações russos. Na última intervenção, diria: “Não tenho qualquer razão para não assumir as minhas responsabilidades”. E deixou uma ameaça velada: “Especulações pelo caráter e nível da sua direção, serão tratados noutros fóruns próprios, num nível institucional próprio. Essas seguirão o seu caminho”, em “defesa do bom nome do presidente da Câmara de Setúbal”. Mas não disse que nível institucional próprio era esse, nem quem eram os visados.
A reunião da Câmara seguiu com a ordem do dia.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes