Dois dias depois de ter publicado uma evocação muito factual e distanciada sobre Otelo Saraiva de Carvalho no site da Presidência - "ainda é cedo para a História o apreciar com a devida distância", escreveu - o Presidente da República acabou por fazer suas as palavras de Ramalho Eanes, o ex-Presidente que esta segunda-feira também escreveu um texto a defender que o antigo militar tem direito a um "lugar de proeminência histórica". Na Academia Militar, à entrada para o velório do "major" de Abril, que comandou as operações do golpe militar que pôs fim à ditadura, Marcelo Rebelo de Sousa aceitou a abordagem do seu antecessor e reconheceu que, "como comandante operacional, como disse o Presidente Eanes, foi uma figura proeminente da história de Portugal" e que "isso já é possível dizer nesse momento".
"Já disse que há uma coisa certa, independentemente do juízo definitivo da História: Otelo Saraiva de Carvalho foi uma figura cimeira do 25 de Abril, que marcou a História de Portugal, a história presente de Portugal: foi um momento de viragem da ditadura para a democracia e a para a liberdade", afirmou o Presidente da República. Mas Marcelo quis sublinhar que outros militares de Abril foram tão determinantes quanto Otelo: "Muitos outros foram importantes: a história o dirá, como Melo Antunes a pensar, Salgueiro Maia a protagonizar, outros a organizarem e a estarem presentes. Agora, comandante operacional houve um, Otelo..."
Sobre a decisão de não decretar o luto nacional, o Presidente passou a responsabilidade para António Costa, e argumentou que "o Governo tem poder para isso e só ele pode propor" esse tipo de exéquias. "Pesou o facto que figuras como Salgueiro Maia e Melo Antunes não mereceram essas homenagem, na altura não ocorreu, e para não abrir um debate sobre vários os nomes cimeiros - qual o nome cimeiro? - penso que foi isso que levou o Governo a não dar o passo", afirmou o Presidente, como o Expresso já tinha noticiado. "Não tem a ver com Otelo", justificou, "esse é o juízo que a história fará".
Na linha do discurso que fez no 25 de Abril, em que defendeu uma reconciliação dos portugueses com os aspetos mais controversos da História, argumentou no sentido de a apreciação que vier a ser feita de Otelo seja em todas as perspectivas, um homem que teve "momentos que suscitaram paixões e rejeições. E quando aceitamos a história, aceitamos como um todo".
Na evocação publicada no site da Presidência da República este domingo, quando se soube da morte do antigo revolucionário aos 84 anos, Marcelo tinha sublinhado também que Otelo foi "um dos mais ativos capitães de abril, exerceu funções muito relevantes durante a revolução e candidatou-se à Presidência da República em 1976". Mas fez questão de acrescentar o lado negro da personalidade: "Afastado do poder na sequência do 25 de novembro de 1975, viria a ser considerado, pela Justiça, envolvido nas FP25, condenado e amnistiado". E ainda usou uma adversativa: "No entanto, parece inquestionável a importância capital que teve no 25 de abril, o símbolo que constituiu de uma linha político-militar durante a revolução, que fica na memória de muitos portugueses associado a lances controversos no início da nossa Democracia, e que suscitou paixões, tal como rejeições", escreveu Marcelo, assumindo ele próprio que está "consciente das profundas clivagens que a sua personalidade suscitou".
Marcelo, que foi ator político, jornalista e constituinte enquanto Otelo esteve ativo, esteve sempre do outro lado da barricada nos anos intensos do PREC. Seria de esperar que o Presidente fosse totalmente inócuo?
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