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Otelo à luz do historiador: revolucionário e polémico

Otelo Saraiva de Carvalho (2019)
Otelo Saraiva de Carvalho (2019)
António Pedro Ferreira

"Voluntarista, um militar corajoso, político utópico e revolucionário excessivo". O historiador Lourenço Pereira Coutinho traça o perfil de Otelo, percorrendo cada passo da sua intervenção pública. Com uma certeza: excessivo foi, instrumentalizado não. "Para o bem e para o mal, conquistou um lugar na História"

Como interpretar Otelo Saraiva de Carvalho, personagem paradoxal, militar destemido, político utópico e revolucionário determinado? Certamente que não de forma parcelar. Olhar para Otelo unicamente como o estratega do 25 de abril ou, por outro lado, apenas como um símbolo do PREC ou do terror espalhado pelas FP-25 significa apreender uma visão incompleta deste homem desconcertante.

Vejamos por partes. Otelo terá despertado para a política com cerca de 21 anos, aquando da candidatura do general Humberto Delgado, outro militar corajoso mas, com as devidas distâncias, também politicamente utópico. Mais tarde, as três comissões em África (duas em Angola, uma na Guiné, mas nenhuma em Moçambique, a sua terra natal) convenceram-no da inviabilidade da guerra e da imperiosa necessidade de lhe pôr fim. Contudo, esta oposição de princípio, partilhada por muitos camaradas de armas, materializou-se apenas aquando da oposição à entrada dos oficiais milicianos no quadro das Forças Armadas.

Otelo agiu então por “espírito de corpo”. Esteve generosamente e desde a primeira hora com o Movimento das Forças Armadas, assumindo a preparação do golpe que visava derrubar o regime ditatorial. Anos mais tarde, o próprio Otelo assumiu que esta operação não tinha plano B. Para quem dava a cara pelo MFA, falhar significaria longos anos de prisão. A posição de Otelo era pois temerária, até inconsciente. No entanto, e tal como estava convicto, o golpe militar de 25 de abril de 1974 acabou por ser bem sucedido e resultar no derrube do regime. Otelo fora o seu estratega solitário e comandante operacional. Sem ele, a História seria escrita de forma diferente.

Após o sucesso do golpe militar, emergiram as figuras políticas do MFA. Parece difícil de acreditar, mas só a 20 de abril é que Otelo tomou conhecimento do documento final do MFA, que fora redigido por Melo Antunes. Outra ironia, foi Otelo quem contribuiu decisivamente para que o MFA atribuísse a presidência da Junta de Salvação Nacional ao general Spínola. Cerca de dois meses mais tarde, seria Spínola a atribuir a Otelo o vice comando do COPCON. Otelo não tinha a densidade política de Melo Antunes nem a coerência serena de Ramalho Eanes, mas o seu voluntarismo destemido tornou-o peça indispensável na estratégia política do então presidente da República.

No inicio do verão de 1974, Otelo Saraiva de Carvalho não tinha porém uma posição política clara. Como testemunhou Henrique Monteiro, o estratega do 25 de abril entusiasmou-se com a social democracia de Olof Palme, mas bastou uma visita a Cuba para o fazer mudar de ideias e abraçar a causa da democracia popular. A radicalização de Otelo acompanhou pois o passo da radicalização da revolução.

A democracia popular que Otelo e outros defendiam estava nas antípodas da democracia liberal e representativa. Negava a pluralidade, a importância dos partidos e do elemento civil. Por outro lado, advogava a continuação da concentração do poder no Presidente da República (então também presidente do Conselho da Revolução e Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas), com subalternização do governo e do parlamento. Durante o PREC, Otelo apoiou entusiasticamente as nacionalizações e a reforma agrária e, também, procurou a instauração da democracia de base popular em que acreditava.

Mas fê-lo da pior forma. Para “purgar” a revolução, assinou mandatos de detenção em branco e ameaçou concentrar a “reação” no Campo Pequeno. Graduado em general de divisão, comandante do COPCON e da região militar de Lisboa, Otelo estava então no auge do seu poder.

Paradoxalmente, o seu voluntarismo idealista não fez dele uma figura facilmente instrumentalizável. Spínola já antes tentara aproveitá-lo em seu proveito, assim como o PCP. Mas Otelo começou desde logo a divergir de Spínola - sobretudo da solução federalista para os territórios ultramarinos - e tinha aversão ao modelo dogmático e à estrutura rígida do PCP, algo que ficava nos antípodas da sua democracia popular, em que as bases exerciam o poder sem o delegar em terceiros.

Foi esta divergência com o PCP que o afastou do último governo de Vasco Gonçalves e o fez apoiar a solução Pinheiro de Azevedo. Era mais um sinal da desaceleração do PREC. A 21 de novembro, o Conselho da Revolução afastou-o do comando da região militar de Lisboa, substituindo-o por Vasco Lourenço. Por fim, a vitória dos militares moderados no 25 de novembro provocou o fim do COPCON, o que significou o ocaso do seu poder.

Apesar dos reveses, Otelo não desistiu da democracia popular. Não acreditava no sistema representativo nem nos partidos, mas via com bons olhos a escolha do Presidente da República por sufrágio direto e universal, uma fórmula admissível numa hipotética democracia popular. Uma candidatura à presidência da República não trairia pois os seus princípios. Caso eleito, procuraria fazer o eixo do poder pender definitivamente para o Presidente da República e Conselho da Revolução, isto em detrimento do Governo, do Parlamento e dos “dispensáveis” partidos.

Otelo Saraiva de Carvalho candidatou-se por duas vezes à presidência da República, em 1976 e 1980. Se em 1976 acreditou na hipótese de vitória (obteve cerca de 16%), em 1980 encarou-a apenas como miragem. Então, e na sua ótica, pairava sobre a revolução a ameaça da “reação”, e o espectro de uma revisão constitucional que reforçaria o peso do Governo, do Parlamento e da via civilista. Este cenário enquadrou o início da fase mais obscura da sua vida pública. Para Otelo, se a democracia popular não chegaria pela eleição do presidente da República, teria de afirmar-se por outras vias.

Em março de 1980, surgiu a Força de Unidade Popular (FUP), um partido político centrado na figura de Otelo, que concorreria a eleições sem nunca ir a votos. Dois meses depois da apresentação da FUP, as Forças Populares 25 de abril (FP-25) fizeram as suas primeiras vitimas.

A ligação FUP/FP-25 era o decalque do modelo então usado noutros palcos europeus – um partido politico com um braço armado – de que foram exemplos a ETA (que, já depois da instauração da democracia em Espanha, teve o Herri Batasuna por braço político) e o IRA (que então tinha o Sinn Féin como braço político).

Entre 1980 e 1987, as FP-25 foram responsáveis por mais de uma dezena de mortes, dezenas de feridos e de assaltos à mão armada. Apesar dos alvos serem cirúrgicos, as FP-25 não pouparam militares nem civis. Não há argumentos que sustentem a legitimidade da utilização da violência, sobretudo da violência extrema, na defesa de princípios políticos. A violência não pode ter lugar numa democracia.

Otelo, líder da FUP, foi preso em 1984 por suspeitas de ligação às FP-25, o que sempre negou. No entanto, o tribunal deu por provada a muito falada relação entre a FUP e as FP-25, partes instrumentais de um projeto que visava a destruição da democracia representativa. Condenado em 1986 por associação terrorista, Otelo acabaria, e depois de muitas vicissitudes, por beneficiar da vontade de parte do poder politico e da sociedade em colocar uma pedra sobre as FP-25, a página mais negra do nosso período democrático. Desde então, remeteu-se a uma vida quase sempre longe dos holofotes.

Quem foi Otelo Saraiva de Carvalho, o homem que hoje morreu com 84 anos? Um herói ou um vilão, dependendo do prisma? Ou a soma dos dois, isto numa visão abrangente? Foi seguramente um homem voluntarista, um militar corajoso, político utópico e revolucionário excessivo. Para o bem e para o mal, conquistou um lugar na História. Esta não pode nem deve esquecer o seu lado solar mas, também, não pode nem deve apagar o seu lado lunar. É preciso juntar ambos para começar a perceber o personagem.

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