Política

Jerónimo contra "confinamento agressivo", onde "se tem mais medo de viver do que de morrer"

Jerónimo contra "confinamento agressivo", onde "se tem mais medo de viver do que de morrer"
ANTÓNIO PEDRO SANTOS

A infância, a guerra, o trabalho na fábrica e a entrada na política. Do drama do soldado ao medo de viver. E ainda as leituras do secretário geral do PCP. Na semana em que o partido celebra cem anos de vida, Jerónimo de Sousa reafirmou todos os ideais comunistas. Mas lembra o que o PCP ensina: "na luta contra o capitalismo, não queremos acabar com os patrões"

Em meia hora, o homem que há 17 anos lidera o PCP aceitou abrir o seu livro de memórias de vida. Falou do "drama" de um soldado na guerra ("o que fazer se aparece alguém e nos aponta uma espingarda"), da entrada na vida política diretamente do mundo operário para a bancada da constituinte e ainda do atual estado das relações com o Governo do PS em plena pandemia.

Miguel Sousa Tavares, na TVI 24, foi o anfitrião. Começou por confrontar Jerónimo pelo anacronismo de um partido maxista leninista com um século de existência. Mas o líder não desarma à primeira. "O PCP é um partido para continuar, porque tem um projeto" e até tem como lema para as celebrações do centenário "o futuro tem partido", que Jerónimo aproveita para encaixar logo no arranque da entrevista.

Um percurso "duro como punhos", prossegue o líder comunista. Referia-se ao partido, mas também se podia usar para a sua própria história de vida. Miguel Sousa Tavares quis traçar a biografia do entrevistado e Jerónimo aproveitou todas as oportunidades para marcar cada etapa de vida como marca de um percurso político. E, também, para mostrar como as dificuldades (no partido ou na vida) podem ser superadas ou contornadas.

A entrada, aos 14 anos, no mundo do trabalho foi bem exemplo dessa habilidade de Jerónimo. "A fábrica começou logo a marcar muito a minha forma de estar e de agir", garante. À chegada, um operário mais velho pergunta-lhe quanto vem ganhar. "Dez escudos", responde o jovem aprendiz. "Tu produzes 40 escudos, 30 vão logo para o bolso do patrão. Tu achas isso justo?", recorda Jerónimo em discurso direto. "Na altura, senti-me profundamente explorado", resume, puxando a biografia logo para a formação política.

O líder comunista "tem mais capital de simpatia do que capital político tem o seu partido", diz Miguel Sousa Tavares. Jerónimo não reage, mas vai marcando pontos. Quando o entrevistador lhe pede para recordar os autores que lia na infância, cita "Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Llorca. E quem mais?". "E Sophia de Mello Breyner", responde de imediato o entrevistado. A poetisa (e mãe de Miguel Sousa Tavares, recorde-se), não estava, claramente, no alinhamento previsto. O jornalista é apanhado de surpresa e solta um inesperado "obrigado".

O drama do soldado e o medo de viver

Jerónimo deixa a 'cassete' de lado e suaviza os diktats do marxismo-leninismo. Quando é questionado, por exemplo, sobre o 'convívio' entre o seu primeiro patrão e os operários comunistas que lhe enchiam a fábrica, assumiu que "ele nunca fez um despedimento por razões políticas ou ideológicas". "Perguntava-nos se sabíamos trabalhar, do resto não queria saber", disse Jerónimo. A luta de classes é um mote, mas "o PCP ensinou-nos que, na luta contra o capitalismo, nós não queremos acabar com os patrões".

A guerra colonial é outro tema trazido à baila. Jerónimo é o único dirigente político que cumpriu dois anos de serviço militar na Guiné Bissau. O caso de Marcelino da Mata surge à baila e o líder comunista não foge ao assunto. "A figura em causa tem a característica de se gabar de ter cometido crimes de guerra", disse. Já ele, que cumpriu a missão na Polícia Militar, viveu uma realidade diferente. "Tomáramos nós que o PAIGC não nos chateasse, para nós não os chatearmos a eles", resume. Afinal de contas, somos todos humanos. "Nós, os jovens soldados tínhamos todos um drama: saber o que fazer se aparecesse alguém e nos apontasse a espingarda". "Era um dilema que, felizmente, nunca tive de confrontar".

Comunista dos sete costados, portanto, o líder reassume todos os ideais do PCP. Porque "o mundo pode ter mudado muito, mas não se alterou a natureza da exploração", explica. Agora, porém, os tempos exigem outros caminhos. "Isso da 'revolução já' é uma coisa que não acontece", assume Jerónimo, para quem "o projeto do nosso partido está refletido no comando constitucional" e o ideal é mesmo atingir "uma democracia avançada". Modelos de países a seguir? O líder comunista rejeita dar exemplos concretos. "Construiremos o nosso caminho, à nossa maneira", diz, recusando cair na esparrela de citar a Coreia do Norte ou a Venezuela como farois do mundo.

O tempo correu rápido na televisão e quase não deu tempo para se falar da geringonça e dos custos políticos de uma ligação política ao PS. "Não seremos, nem fomos, ponto de apoio do Governo do PS e muito menos seremos comparsas do PSD e CDS", garantiu Jerónimo.

O atual estado de emergência pandémico - contra o qual o PCP sempre votou contra - encerrou a entrevista. Jerónimo criticou sempre o modelo de "confinamento agressivo" que o País adotou. Se foi a única maneira de travar a pandemia, o líder comunista desconfia. "Não quer dizer que outras medidas de fundo não resultassem", afirmou. "Sinceramente, subestimar o efeito do confinamento"... diz Jerónimo com a cara franzida e já com a entrevista a chegar ao fim. "Como se admite que se chegue a um ponto em que se tem mais medo de viver do que medo de morrer?".

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