O resultado era previsível: entre um candidato liberal e um comunista é muito, quase tudo, mais o que os separa do que o que os une. Daí que o debate desta noite tenha sido uma meia hora de discussão ideológica, por vezes caricatural, sem grandes ganhos ou perdas em causa
Saíram como entraram: cada um na sua. O debate entre João Ferreira e Tiago Mayan Gonçalves será provavelmente o confronto em que dois candidatos à presidência da República menos estariam apostados em ‘roubar’ eleitorado um ao outro e em falar a eleitorado que não o seu: a distância no espetro político, que os coloca em pontas opostas, é tão grande que cada um só podia falar àqueles com quem já conta.
Foi o que aconteceu, durante a meia hora de debate mais ideológico a que se assistiu nestes ‘rounds’ presidenciais, na noite desta quarta-feira, na TVI24. Por vezes, com recurso à caricatura para atacar o adversário: cada um no seu terreno, e com pouca exaltação dos ânimos, os dois candidatos foram explorando os exageros dos modelos que criticam para garantir os benefícios dos seus.
Houve apenas um ponto em que liberal e comunista estiveram de acordo: ambos criticam o estado de emergência - João Ferreira puxou pela necessidade de reforçar o SNS e lembrou que o pico máximo de casos de covid-19 está agora a ser atingido, apesar de estarmos em estado de exceção; Mayan Gonçalves garantiu que o país não “aguenta um confinamento geral”, apesar de não detalhar qual seria o seu modelo; ambos concordaram que a defesa da saúde e da economia não são mutuamente exclusivos; e João Ferreira aproveitou para garantir que a sua agenda de campanha tem sido “muito alterada” graças às preocupações sanitárias, enquanto Mayan garantiu que não terá comícios nem fará nada que não seja permitido ao cidadão comum.
E a semelhança ficou por aqui. Depois disto, tudo foi uma oportunidade para os dois explorarem as suas diferenças e falarem aos seus eleitorados, por vezes com recurso a exemplos extremos. Se João Ferreira criticava o “impacto devastador” das políticas liberais, Mayan respondia que o modelo comunista é “a receita para o desastre”. Se Ferreira acusava Mayan de pensar no liberalismo como um “conto de fadas” mas que, na verdade, representa “o inferno dos povos”, o adversário acusava-o de estar “preso no século XIX, num mundo que não existe” e até de querer “nacionalizar tudo e ter tudo nas mãos do Estado” (acusação que Ferreira rebateu prontamente, lembrando que a Consituição prevê o papel da iniciativa privada).
Fora da discussão ideológica pura, o caso português: se o candidato liberal garantiu que Portugal “não aplica receitas liberais há séculos”, João Ferreira garantiu que essas mesmas políticas ganharam grande preponderância nos últimos anos, com “o caminho das liberalizações e das privatizações”. De novo, Mayan acusava: “A nacionalização de todo o setor económico é o seu projeto de futuro”. Ferreira respondia: “Se calhar desiludi-o, mas não é”. Exemplo concreto foi o da habitação, com o candidato apoiado pela IL a defender que este é um “momento de ouro” para liberalizar o mercado e o adversário a abanar com a cabeça, lembrando o exemplo da lei das rendas de Assunção Cristas. Foi só uma das discussões clássicas entre liberais e comunistas que foram abordadas, entre trocas de argumentos sobre os respectivos projetos para a banca ou sobre o papel do Estado numa crise (com Ferreira a rejeitar austeridade e Mayan a ser menos claro quanto à solução preferida, mas a apoiar-se nos fundos europeus para dizer que esta seria evitável).
No final, contornaram ambos as perguntas sobre as reações que teriam a crises políticas se estivessem em Belém e aos candidatos que escolheriam se tivessem de votar numa segunda volta. As discordâncias ficaram marcadas, até porque não haveria muito em comum a conversar. E os “papões” ideológicos, como Mayan disse a certa altura, foram agitados, numa coreografia que deverá ter bons resultados junto dos apoiantes de cada um.
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