Nos últimos dias começou a surgir um consenso: o de que as regras para o Ano Novo deveriam ser mais apertadas. E acabou por ser isso que o Governo decidiu. O Natal continuará com as regras que estavam definidas mas a passagem de ano fica muito mais condicionada. O Conselho de Ministros, reunido esta quinta-feira, decidiu que a circulação na via pública fica proibida a partir das 23h do dia 31 — quando antes era permitido até às duas da manhã -, limitando assim os festejos do final do ano.
Os sinais que tinham surgido iam nesse sentido: de um agravamento de restrições após o Natal, para conter ao máximo possíveis contágios, até porque os especialistas consideram o plano "arriscado". Assim, além da limitação de Ano Novo, haverá também recolher obrigatório nos dias 1, 2 e 3 a partir da 13h. Como tinha ficado definido, mantém-se a proibição de circulação entre concelhos entre as 00h de 31 de dezembro e as 05h de 4 de Janeiro.
A pressão para que algo mudasse nos próximos 15 dias começou a ser mais forte não por causa do número de casos, que tem vindo a baixar, mas devido às mortes associadas à doença, número que teima em não cair: há oito dias que permanecem acima de 80 e já atingiram números recorde de 98 pessoas num dia. Isso mesmo notou Marcelo Rebelo de Sousa no novo decreto do estado de emergência: "Mantêm-se números de falecimentos ainda muito elevados, confirmando os peritos os claros riscos de novo agravamento da pandemia em caso de redução das medidas tomadas para lhe fazer face".
Do lado político, o Presidente da República vai apelando ao "bom senso, maturidade cívica e justa contenção" dos portugueses no Natal, pedindo-lhes um "contrato de confiança", numa mensagem que deixou depois da aprovação do novo estado de emergência - que dura até ao dia 7 de janeiro. Nunca se refere ao final do ano.
As decisões noutros países europeus também foram avaliadas à lupa. Alemanha, França, Itália, Países Baixos e Reino Unido apertaram as regras para esta época, voltando atrás no que tinha sido decidido. Tudo isto acontece quando o primeiro-ministro está, pela primeira vez em 10 meses, em isolamento profilático, depois de ter almoçado com o presidente francês, Emmanuel Macron - que deu positivo. O primeiro teste de Costa, feito esta quinta-feira, deu negativo. O primeiro-ministro não tem sintomas e manteve o trabalho à distância.
Natal, um presente envenenado
O que vai acontecer no Natal vai depender mais de todos nós e menos do que o Governo disser, acreditam os especialistas, mas, apesar disso, consideram ser "arriscado manter a abertura de restrições no Natal", diz ao Expresso Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Segundo o especialista, não é possível antecipar a dimensão do aumento de casos em janeiro mas não deverá ser "tão elevada como em outubro ou novembro". Tudo depende dos comportamentos da população: "Nunca passámos por uma época de Natal como esta e sabemos que é uma altura muito influenciada por um fator de comportamento social difícil de antecipar".
Para que dependa de cada um, "devia ser dada mais informação para que as pessoas menos diferenciadas saibam claramente o que fazer”, sugere o responsável pelo gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos (OM), Filipe Froes. “É preciso aconselhar mais restrições de forma pedagógica, enquanto dever cívico, e isso deve ser um contínuo”, acrescenta.
O diagnóstico é partilhado pela infecciologista do Hospital de São João Margarida Tavares. “Sempre fui muito crítica das medidas restritivas impostas porque não impedem as pessoas de fazerem o que querem. O que faz diferença são as mensagens de sensibilização, mas neste caso o que as pessoas retiveram foi o ‘aligeirar’.” A poucos dias do Natal, o pneumologista Filipe Froes acredita que será difícil levar as famílias a mudarem os planos. No entanto, há cautelas que têm mesmo de existir: “Aconselho a evitar fortemente as deslocações, os aglomerados nas compras e mais do que dois agregados reunidos em casa.”
António Diniz, também membro do gabinete da OM, alerta que a maior liberdade durante esta época é um presente envenenado. “O número de novos casos diários é elevado e foi pouco valorizado o facto de terem surgido depois de dois períodos excecionais com muitas pessoas em casa e uma quebra acentuada no volume de testes realizados. Será muito difícil que nos 15 dias seguintes não venha a existir um ressurgimento significativo das infeções.”
A maior liberdade de movimentos terá consequências: “Vai sair muito caro em janeiro. Como nada mudou, vamos voltar ao número de casos de há algumas semanas, com a agravante de termos já os cuidados intensivos cheios”, avisa a antiga secretária de Estado da Saúde Raquel Duarte.
“O cerco devia ter sido apertado logo em outubro para fazer baixar mais os números no período festivo”, acrescenta António Diniz. Agora é preciso conter danos, “ter mesas ou lugares por bolha familiar quando há mais do que um agregado ou afastar as crianças dos familiares de risco”. E ter cuidado, muito, com as falsas seguranças. “O teste rápido é sobretudo para avaliar a infecciosidade, isto é, se podemos transmitir a infeção. Um resultado negativo só assegura que não se propaga o vírus nas 18 a 24 horas seguintes, no máximo.” Os tempos são de batalha contra o vírus e o discurso deve estar ao mesmo nível. “Faltou uma ampla mobilização nacional, quase como que para a guerra. Dizer aos portugueses que vamos ter de sacrificar um pouco da nossa liberdade social e afetiva por um valor maior”, diz.
Para José Artur Paiva, presidente do Colégio de Medicina Intensiva da OM, “temos um objetivo tangível e essa visão tem de ser dada. Com um milhão de vacinados na primeira fase e perto de um milhão que já terá tido a doença, podemos chegar a uma imunidade de grupo em seis meses e isso será tanto melhor se o nosso comportamento for adequado. Para isso precisamos de restrição social neste Natal e Ano Novo”, explica. “As pessoas estão muito cansadas, muito solitárias e a argumentação afetiva é muito superior à científica. Portanto, a única forma é usar um pouco de afetividade na ciência”, prescreve ao Governo.