Política

“Lutar pelo emprego não é menos romântico do que lutar pela liberdade”: Ruben de Carvalho 1944-2019

“Lutar pelo emprego não é menos romântico do que lutar pela liberdade”: Ruben de Carvalho 1944-2019
Tiago Miranda

Foi um histórico do PCP, onde começou a militar muito antes do 25 de Abril. Desse tempo até ao dia em que fez 70 anos e nos concedeu uma das suas muito raras entrevistas, Ruben de Carvalho contou como foi feita a sua matéria-prima. Foi jornalista, escritor, político e 'fazedor', e desempenhou muito mais tarefas que os seus interesses lhe permitiram realizar. O maior de todos foi o interesse pela música, que o levou a escrever livros e a fazer programas de rádio. O Expresso republica a entrevista originalmente publicada na Revista de 9 de agosto de 2014

“Lutar pelo emprego não é menos romântico do que lutar pela liberdade”: Ruben de Carvalho 1944-2019

Ana Soromenho

Jornalista

Atravessou desertos, admite solidões, mas ainda acredita numa sociedade igual. Esta é a matéria pura de um histórico do Partido Comunista Português (PCP). Neste lugar, mantém-se irredutível. De resto, é um mundano, um burguês confesso, que tem o prazer da conversa, o gosto dos livros e, sobretudo, um desmesurado prazer pela música, não fosse ele o homem da Festa do "Avante!", primeiro palco de festivais que por cá se fizeram, quando pouco ou nada acontecia. Ao serviço do PCP, foi deputado por Setúbal, mas não gostou nada de ficar parado nas cadeiras da Assembleia da República; foi vereador também em Setúbal e em Lisboa, coisa que lhe deu mais gozo, porque gosta de meter a mão na massa. A sua matéria é fazer: jornais, livros, programas de rádio... Não teve filhos. Primeiro porque podia a todo o momento ter de passar à clandestinidade, depois porque não houve tempo. Completou no mês passado 70 anos e acedeu a fazer balanços, numa das suas raras entrevistas de vida.

Numa entrevista que deu ao Expresso, em 1998, Maria João Avillez perguntava-lhe: "Se olhar para trás, está certo?" Tinha 54 anos e disse que sim, que estava tudo certo. Agora, que acabou de fazer 70 anos, volto à pergunta: continua tudo certo? Não houve encruzilhadas?
A resposta pode ter um certo ar presunçoso, estar tudo certo não quer dizer que tenha feito tudo bem. Fazendo o balanço, a questão é saber se faria tudo outra vez e da mesma maneira. No essencial faria, embora não me custe admitir que há coisas que poderia ter feito melhor. A única situação em que poderia ter tomado uma decisão que teria alterado profundamente a minha vida foi quando, no quinto ano do liceu, resolvi não ir para História. Decidi ir para Ciências, queria entrar na Academia Militar. Entretanto, achei que os meus pais não tinham de andar a pagar as minhas indecisões e fui trabalhar para o "O Século".

De onde lhe vinha o gosto pelos jornais?
Na minha vida de dirigente estudantil, eu era o tipo que andava com resmas de papel debaixo do braço, sempre metido nas tipografias. Adorava aquele ambiente. A tipografia de "O Século" ficava no mesmo edifício da redação e, mal podia, escapava-me. O pai do Batista Bastos, tipógrafo do jornal, começou a ver-me muito por lá a pegar nos granéis e avisou-me: "Estás tramado! Ainda não sabes, mas a tinta da tipografia, quando passa a pele, entra no sangue, e um tipo nunca mais se vê livre dela." Acertou. Nunca mais me livrei. Aquele ambiente da tipografia - do chumbo, da composição, da tinta e da prova de granel - desapareceu, mas ainda hoje, quando entro no offset, só o cheiro do papel comove-me.

A tipografia, o trabalho das rotativas e das máquinas... Há um certo romantismo nesse ambiente operário. Era isso que o atraía?
Também. Esse romantismo é evidente. Mas sou sobretudo um fazedor. E, ali, é a matéria do fazedor que me atrai. Da coisa que nos sai das mãos e imediatamente se concretiza. O que eu gosto nos jornais é todo daquele mundo: escrever, paginar, conceber, titular, arrumar, imprimir... e logo em seguida já estar a fazer outro.

Fazedor é a palavra que melhor o caracteriza?
Em muitos aspetos pode aplicar-se à minha maneira de ser. Mas também tenho muito gosto no trabalho manual direto. Sou, por exemplo, um bricoleur apaixonado. Esta casa foi toda feita por mim. Há dois tipos de montras onde paro sempre: livrarias e lojas de ferragens. Se porventura passar numa casa de ferragens e der com uma peça que não sei para que serve, não saio de lá até descobrir. Se lhe mostrar as minhas caixas de ferramentas, ficará admirada.

Coleciona ferramentas?
Não é uma coleção, não faço coleção de nada.

Mas acumula. Basta olhar para esta casa, está cheia de coisas, há livros e discos por todo o lado... Que área tem esta casa?
Quase duzentos metros quadrados. Além desta, tenho ainda mais duas que estão totalmente ocupadas pelas minhas coisas. Mas não acumulo. Preciso é de muito.

Choca-o a ideia de acumular, no sentido de gostar de ter coisas que lhe dão prazer?
Sou incapaz de acumular por acumular. Tem de estar associado à ideia de utilidade. Pelo menos admitir como hipótese que terá sempre uma utilidade.

Aqui, é o comunista a falar?
Não tem nada a ver com isso. Como sabe, escrevo. Preciso de livros. Também sou frequentemente solicitado para fazer conferências sobre música. Não se pode fazer conferências sobre música sem dar a ouvir. Se uma pessoa tem um tipo de atividade em que mete o nariz em muita coisa diferente, acaba sempre por chegar àquela situação: "Gaita, porque é que deitei aquilo fora?" Em última instância, posso acumular, mas não é um acumular acéfalo.

Quantos discos tem?
Muitos milhares, não faço ideia. Em vinil, aqui há uns anos, tinha sete mil. Agora são bastantes mais, porque os amigos foram-se desfazendo deles e deram-mos. Muitos são repetidos, ainda não tive tempo para os organizar. Implica ouvir tudo e fazer a seleção dos que estão em melhor estado. Os que já eram meus, continuo a utilizá-los para fazer os meu programas, as "Crónicas da Idade Mídia", na Antena 1. Quanto aos CD, também não sei. Não os tenho catalogados, confio na minha memória. O mesmo acontece com os livros. Se passar naquele corredor e me faltar um livro, dou logo por isso.

Considera escrever as suas memórias?
Não. Como todos os jornalistas, li, evidentemente, quilómetros de histórias. Estou até convencido de que sou bastante honesto com a minha memória, mas, para mim, há um problema com o género.

Que é?
Há sempre uma componente de efabulação na escrita das memórias com a qual não me dou bem. Acabam por ser ficção. Costumo dizer que o meu camarada Álvaro Cunhal, quando resolveu escrever as suas memórias, foi bastante inteligente, porque o fez utilizando o registo da ficção. Ora eu sou completamente incapaz de escrever ficção. A componente literária da escrita nunca me seduziu particularmente.

Escrever sobre si seria um pudor? Quando aceitou dar esta entrevista, avisou logo que não gosta dos registos pessoais.
É verdade. Detesto fotografias. Detesto falar sobre mim.

Mas gosta de ler biografias?
Por acaso, não é a leitura que mais pratico. Os meus amigos alfarrabistas dizem que, quando percorremos as estantes de uma pessoa, ao fim dessa viagem ficamos completamente esclarecidos. Nas minhas estantes, comparado com o resto, a biografia é residual.

Além da música, que outras áreas ocupam as suas estantes?
Essa é, sem dúvida, a maior de todas. A seguir há uma zona onde as coisas se metem umas pelas outras, que é a política e a história. Depois, há Lisboa, e a seguir as ciências humanas em geral. Tenho muita coisa sobre filosofia e sociologia. Literatura pura e dura, a que tenho foi a que trouxe da casa dos meus pais.

Como era o ambiente da sua casa?
Era uma casa cheia. Do grupo de amigos, os meus pais foram os primeiros a casar-se, e era lá que todos se reuniam. O meu pai era médico, a minha mãe professora. Não me lembro de alguma vez ter tido o mais pequeno problema com eles. Sou filho único e não tenho memória de ter sido muito protegido. Tinha uma grande autonomia, com 10 anos já andava com a chave de casa no bolso. E a minha educação foi bastante liberal.

De onde vem a política?
Também vem de casa. A minha mãe tinha ligação ao Partido Comunista e muitos amigos no grupo dos neorrealistas. Sobretudo os escritores. O resto vem pela escola. Ainda no quarto ano do liceu, em 1958, são as eleições do Delgado - e a minha turma, por via familiar, parecia uma célula do partido. Fui direitinho. Tudo isto deu origem às associações académicas e ao movimento estudantil.

Com 20 anos já militava no Partido Comunista, já tinha sido preso, trabalhava no jornal "O Século" como redator paginador... Entretanto, cumpre o serviço militar e parte para Angola, para a guerra colonial. Foi uma decisão discutida no partido?
Não. O partido nunca deu uma palavra unívoca a esse respeito. Com exceção de camaradas que passaram à clandestinidade por necessidade do trabalho político ou por estarem em risco de ser presos, essa decisão dizia respeito a cada um.

Foi das decisões de vida mais difíceis?
Foi. Era contraditório pensar o que pensava, fazer o que fazia e ir para a guerra colonial. Mas tomei-a, e não me arrependi.

O medo existiu?
Medo? Faça-me justiça! Já tinha estado preso seis vezes. É evidente que o medo nunca foi uma condicionante na minha vida. Faz alguma ideia do que é ter medo?

O que é?
Advém sempre de um sentimento de impotência face a qualquer coisa que pode acontecer, que não se consegue evitar e não se sabe bem o que é. Pode durar um momento, pode durar uma vida. É uma coisa sobre a qual se efabula e a maior parte das vezes nem se controla. O segredo da repressão é, exatamente, fazer incidir constantemente sobre as pessoas uma situação que elas desconhecem, e por isso mesmo não têm como se defender. Em relação à guerra, tudo somado, fiz cinco anos de tropa, vi morrer 18 gajos [pausa]. Sei o que é ter medo, sei o que é não ter e sei como as pessoas reagem quando têm medo. A experiência de Angola marcou-me, mas não exageremos. O dia 25 de Abril marcou-me muito mais. Assim como o 11 de Março ou o 25 de Novembro.

Como foi o seu 25 de Novembro?
Foi ter arriscado ser preso por ter ido ao Quartel General Militar da Região de Lisboa buscar uma credencial para fazer sair o "Avante!". Tinha sido declarado o estado de sítio, com recolher obrigatório, e a comunicação social tinha sido suspensa. No dia 26 não houve jornais. Vivi esse dia de pistola à cinta. Isto não foi a brincar.

O 25 de Novembro marca o fim do PREC [Processo Revolucionário em Curso]. Foi o fim das ilusões revolucionárias?
Não. Sou comunista. A nossa posição em relação a todo o período do PREC não é inteiramente igual àquela que pretendem dizer que foi a nossa. Fizemos tudo para evitar que acontecesse o que aconteceu, apesar da mentira que é sistematicamente veiculada. As coisas não correram como a gente queria, mas tentámos evitar a rutura entre o Grupo dos Nove e a esquerda militar. Em rigor, a derrota não foi nossa, e isso dá-me uma grande força moral. A história que se conta sobre o papel do PCP é falseada. Porventura leu um pequeno volume que se chama "Verdade e Mentira na Revolução Portuguesa", de Álvaro Cunhal?

Não.
Mas devia ler. Está lá tudo muito bem explicado.

Quando se encontrou pela primeira vez com Álvaro Cunhal, quando ele regressa do exílio, ia confrontar-se com o mito?
Quer saber como foi o nosso primeiro encontro? Dois dias depois de ter chegado, reunimo-nos uma hora e logo a seguir instalei-o em São Bento. Andei a escolher a sala e as secretárias. Ele ficou num gabinete ao lado do meu. Eu era chefe de gabinete do Pereira de Moura, ministro sem pasta, e tínhamos uma porta por onde fazíamos sinais quando precisávamos de falar. Nunca tive uma conversa com ele em que não aprendesse qualquer coisa, mas daí até ter a veneração que muita gente tinha nunca foi o caso.

Quando Pacheco Pereira andava a escrever a biografia sobre o líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal nunca quis falar. Ele tinha conversas agendadas com uma série de gente, mas parece que entretanto receberam instruções para não comparecerem. Foi contactado?
Não. Eu e Pacheco Pereira estamos fartos de falar de Cunhal, mas não nesse contexto. Foi colega de curso da minha primeira mulher, era visita de minha casa e já tínhamos discussões olímpicas. Depois do 25 de Abril continuámos a dar-nos muito bem, e de vez em quando lá vou eu para a Marmeleira discutir com ele a vanidade dos bens terrenos.

Em 1973, Francisco Pinto Balsemão convidou-o para chefiar a secção internacional do Expresso. Ponderou e recusou. Também foi decisão sua?
Foi do partido. Nessa altura já era uma pessoa relativamente conhecida como comunista, ou pelo menos na órbita do partido, e uma presença num jornal da ala liberal podia gerar alguns equívocos que não eram convenientes.

Ainda no capítulo das decisões, logo em 1974 abandona as redações e entra na Soeiro Pereira Gomes [sede do PCP] como funcionário. É uma determinação coletiva?
Não. Essa foi inteiramente minha.

Sendo um homem do mundo, porque é que decidiu fazê-lo?
Entendi que as tarefas que desempenhava nessa altura, nomeadamente ser chefe de redação do "Avante!", me colocavam numa situação inteiramente idêntica a qualquer outro funcionário do partido. Naquela época, para mim, era uma medida moralmente correta.

Tiago Miranda

A sua cultura musical e cinéfila, o seu gosto pela banda desenhada e o fascínio pela cultura popular norte-americana tem pouco a ver com a cultura do PCP. De onde vem ela?
Há duas coisas que me atraem muito na cultura e na realidade americanas. Uma é a presença do trabalho em todas as suas manifestações, na sociedade. Desde o trabalho puro e simples até ao trabalho organizado e ao sindicalismo. A outra é que, devido ao tempo histórico dos Estados Unidos, as análises sobre este contexto são muito rápidas e breves. Enquanto andamos a divagar sobre períodos longínquos, já eles estão a estudar o que aconteceu há dez anos. O aprofundamento da realidade contemporânea pelos americanos é sempre muito sedutora para mim. Isto também é verdade em relação à música, com o acrescento de a cultura popular ser a cultura deles, porque não têm outra.

À cultura soviética o que foi buscar?
Muito pouco. Há, evidentemente, dois momentos fascinantes na vida soviética. O período da revolução, fantástico de criatividade artística, ideológica e de esforço coletivo, e um outro, já na II Guerra Mundial, na resistência na vitória contra o nazismo. Embora respeite as opções depois tomadas pela valorização geral da cultura e da arte clássica, com companhias como o Bolshoi e o teatro ao alcance de todos, uma cultura de estética oficial, de Estado, não tem nada a ver comigo. O Álvaro tem uma frase muito bonita: "Nós somos os homens do sonho." Como é que podemos amarrar as asas ao sonho? Sabe, é que eu nunca estive na União Soviética.

Nunca lá foi?
Fui e voltei. Não vim para o partido convicto que ia estar de acordo com tudo. So what? Também não vim convencido de que o socialismo estava ali ao virar da esquina. Não está, nem nunca esteve. Seguramente não vim convencido de que a União Soviética era a oitava maravilha do mundo. Aliás, nunca subscrevi essa linha. Fui lá várias vezes e houve muitas inquietações de que me dei conta.

Com as viveu? Apesar de tudo, o PCP de Álvaro Cunhal era muito alinhado.
Não nos podemos esquecer que foram muitos anos de uma ligação profunda à União Soviética e de uma compreensão, a meu ver correta, em termos mundiais e em termos revolucionários. Mas o próprio Álvaro reconheceu na subestimação de uma série de questões os erros que já estavam à vista. Mas deixe-me também dizer-lhe que o ser "muito alinhado" também é outro mito. Se tínhamos coisas a dizer, dizíamo-las a eles, aos soviéticos. Não ao Expresso.

Quando na sua juventude chegou ao comunismo, havia ainda uma Europa vermelha. O que sobra do comunismo no contexto internacional?
[Pausa] Muito pouco. Nós, os cubanos, os brasileiros, Chipre... No fundo, pequenos grupos que sobraram dos partidos comunistas europeus e pouco mais.

Nesse sentido, o PCP é um bastião, como se provou nas últimas eleições europeias. É uma solidão?
Nalguns aspetos, é uma solidão grande. Mas, veja bem, eu sou marxista. Do ponto de vista teórico, é essa a minha formação. Não há nada, nem uma linha que seja, em toda a literatura do Marx que me diga que as derrotas são impossíveis. Portanto, que tenhamos derrotas e que venhamos a ter mais não abala nada as minhas convicções. Obviamente que ficaria muito contente se visse o socialismo triunfar no mundo, um dia que fosse da minha vida, mas também tenho a dizer que não sou burro.

Se tivesse hoje 20 anos, militava no PCP?
Não querendo ser quadrado, não tenho dúvidas de que seria comunista. O que me seduziu desde sempre na intervenção política, que é a transformação e a capacidade de mudar, mantém-se. Os valores ideológicos, humanos e até históricos, com os quais me identifiquei há 50 anos, já se sabe que se mantiveram, porque continuei no partido.

Na sua juventude, lutar pela liberdade era um apelo motivador e bastante romântico.
Lutar pelo emprego é menos romântico ou motivador do que lutar pela liberdade? Acho que não. Pelo contrário. Aparentemente, a liberdade é menos imediata e menos premente quando não se tem um emprego. Faço parte de uma geração muito ancorada no valor do trabalho. Hoje não podemos separar a situação do emprego, ou do desemprego, com a ofensiva ideológica contra o trabalho.

O que quer dizer?
Temos um Governo que não se limita a acusar os trabalhadores. Conseguiu esta coisa espantosa que foi transformar os trabalhadores nuns profiteurs. Portugal tem problemas porque os trabalhadores ganharam demais, este é o discurso. O discurso da culpa é a inversão total dos valores. O trabalho, enquanto um valor humano, permite transformar a vida.

Em que pode ser sedutor, para um jovem de 2014, uma filiação no Partido Comunista?
Um ambiente de solidariedade que não encontrará em muitos outros sítios e que se manifesta sob o ponto de vista etário e social.

Estamos a falar de uma geração muito individualista, que não confia na política. Os valores do trabalho e do coletivo não são propriamente o discurso mais sedutor.
Mais uma excelente razão.

O que lhe pergunto é como é que o discurso do PCP se adapta a este tempo?
Não tem de se adaptar. Onde é que lhe parece que se possa criar um discurso sedutor para um tipo desempregado que olhe à sua volta e perceba quem é que intervém, quem é que questiona, quem tenta encontrar soluções, quem negoceia, e por aí fora? Por isso mesmo é que temos 14 por cento de votação.

Quantos jovens se filiaram no PCP nos últimos cinco anos?
As últimas 600 filiações no partido são do último ano. Entre elas, mais de 400 são de jovens com menos de 25 anos.

É a maior adesão dos últimos anos?
Nem pensar. Basta reparar que a idade média das pessoas do Comité Central deve andar na casa dos 30 e 40 anos.

Quais foram as maiores questões com que se debateu no PCP?
Em rigor, por estanho que isto possa parecer, nunca tive discussões particularmente complicadas.

Nunca pôs em causa a militância?
Não.

Também nunca quis ser secretário-geral.
E isso dá-me uma serenidade muito grande.

Qual é a sua maior vaidade?
Sei lá. Gostei de ter feito muita coisa, tentei sempre fazê-lo da melhor forma que podia e com todo o esforço. Chorei que nem uma Madalena arrependida quando fiz a primeira edição do "Avante!". Também me deram muito gozo os livros que escrevi sobre o fado e o papel que desempenhei na sua divulgação. Quando o levei ao Álvaro com uma dedicatória, ele disse: "Pois é, esperaste que o Graça [Fernando Lopes Graça] morresse para o escrever."

Um companheiro é sempre um camarada?
Não. Tenho amigos que não são camaradas. Mas é natural que um grande companheiro acabe por ser um camarada. Quando se tem o quotidiano que eu tenho, não há nada de estranho nisso.

E os companheiros improváveis?
Tenho muitos. Sou uma pessoa com quem não é difícil lidar. Praticamente não deixei de falar com ninguém que saiu do partido. Conhecia-os a todos, era a minha geração. Quando é preciso falar com alguém com quem mais ninguém fala, lá vou eu. Mas isto tanto se aplica a alguém que saiu como a alguém do CDS ou de outro partido. Ainda há pouco tempo fui de avião até ao Porto para participar numa sessão de homenagem ao Vasco Graça Moura. Também tive uma grande cumplicidade com a Maria José Nogueira Pinto.

Quem teve mais pena de ver deixar o PCP?
Tanta gente.

É mais mundano do que a maioria dos seus camaradas. Nesse sentido, foi um pião muito transversal. Aquela casa é bastante fechada.
E vai ser cada vez pior, infelizmente. Pertenço a uma geração que, além do partido, tinha vida social. A minha vida não foi só política, e continua a não ser. O que acontece hoje com a malta mais nova é que funciona em tribo. Além disso, esta questão também tem um problema de origem de classe. Sou da burguesia, sei estar em qualquer mesa e tenho conversa para toda a gente. Apesar de tudo, a maioria das pessoas não teve esta vida nem este tipo de educação. Do ponto de vista do à vontade, é diferente ser filho de um médico e de uma professora do que sê-lo de um operário e de uma caixa de supermercado. Embora possa haver por lá a ideia peregrina de que a rudeza é uma afirmação de classe. O problema é mais grave e mais profundo.

Então, sempre é bom haver variantes sociais.
Não fico com as minha convicções rigorosamente nada abaladas por ser educado e tratar bem as pessoas, mas isto é fruto da educação que tive - e que, infelizmente, outras pessoas não tiveram.

No início, o PCP foi também um partido de intelectuais. Ao longo das décadas, este legado foi-se esvaziando. Depois do Saramago, sobra o Manuel de Gusmão e o Ruben.
É um facto. Mas também podemos levar esse raciocínio a toda a sociedade portuguesa. Já viu quem são os intelectuais do PS ou do PSD?

ENTREVISTA DE ANA SOROMENHO

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