Política

O Presidente mediático foi à cidade do imperador invisível

Marcelo Rebelo de Sousa visitou a Cidade Proibida em Pequim
Marcelo Rebelo de Sousa visitou a Cidade Proibida em Pequim
Filipe Santos Costa

Marcelo Rebelo de Sousa visitou a Cidade Proibida, onde os imperadores chineses viviam longe dos olhares do povo. Confessou que "imperador não faz o meu género". E foi cumprimentar o povo

Houve um tempo em que o Império do Meio era governado por um imperador invisível. Em Pequim, toda uma cidade foi construída para que o senhor absoluto desse vasto Império vivesse resguardado de olhares indiscretos, rodeado pela sua corte de conselheiros, oficiais, eunucos e concubinas. A distância era, em si mesma, um instrumento de poder. Hoje, a moda diz que o instrumento que dá poder não é a distância, nem a invisivilidade, mas a proximidade e o mediatismo. Dificilmente o contraste seria maior entre os tempos dos velhos imperadores da China e o tempo atual do Presidente da República Portuguesa.

Este domingo, o Presidente que todo um país conhece como "o Marcelo" - assim, com o artigo definido que mostra tu-cá-tu-lá e o nome próprio que revela familiaridade - visitou a cidade dos imperadores chineses. A Cidade Proibida - outro caso em que o nome diz tudo, no reverso da designação "o Marcelo".

O Presidente de Portugal no mundo do Imperador
MIGUEL A. LOPES

A Cidade Proibida, que qualquer cidadão do mundo pode conhecer das imagens do filme "O Último Imperador", é o local turístico mais visitado de Pequim, a par da Grande Muralha; as filas para entrar acumulam-se na entrada que dá para a tristemente célebre Praça Tiananmen, e as multidões de turistas acotovelam-se pelos seus muitos pátios, palácios e pavilhões. Na manhã deste domingo (hora de Pequim), acumulavam-se ainda mais, porque tinham menos espaço por onde circular - o eixo principal da cidade ficou vedado para a visita de Marcelo. Por ironia, o Presidente que gosta de estar perto do povo viu o povo ser mantido bem à distância. Só no final houve uma breve aparição desse Marcelo que os portugueses conhecem (lá chegaremos).

Marcelo Rebelo de Sousa na Cidade Proibida, em Pequim
MIGUEL A. LOPES

Percorrendo os vários anéis da cidade - das zonas menos restritas, onde se realizavam as cerimónias protocolares de maior impacto, até às áreas privadas onde só o imperador e os seus mais próximos podiam circular -, Marcelo foi confirmando a rígida estratificação dessa sociedade em que um tinha poder absoluto sobre milhões que nunca o haviam visto. "Imperador não faz o meu género", comentou Marcelo para um jornalista, enquanto fazia pose para uma foto da praxe.

"E acabou mal, como se sabe..." Sim, acabou com uma revolução, e o imperador deposto e exilado.

"Noutros tempos..."

Adiante, já depois de ter percorrido quase todo o eixo central da cidade; depois de ter passado pelo Pavilhão da Harmonia Suprema, onde os oficiais prestavam homenagem ao imperador sem o poderem olhar, ou pelo pavilhão da música, onde o português Tomás Pereira, enviado de D. João V, punha o imperador Kangxi a par das últimas novidades da ópera barroca europeia, no século XVIII; já depois de ter assinado o livro de honra da Cidade Proibida, Marcelo chamaria a atenção para a diferença entre o poder total e distante de outros tempos, e o poder numa democracia como a portuguesa, escrutinado e próximo.

"Noutros tempos, o império chinês era infindo e a vida do imperador passava por uma estratificação social muito rígida, como se vê aqui, [onde] cada edifício corresponde a um estrato social e político diferente. [Isso] foi mudando no tempo. O imperador começou por ser invisível, ninguém o via, e pouco a pouco passou a ser visível, e no século XIX já ia assistir aos exames dos oficiais mais elevados do império, e finalmente esses oficiais podiam vê-lo face a face", comentou o Presidente, como se estivesse numa aula instantânea.

Não estará a política contemporânea a cair no extremo oposto, por excesso de visibilidade e mediatismo?, perguntaram-lhe.

"Depende muito das circunstâncias. Há hoje meios de acesso instantâneo ao que se passa na liderança do poder político que não havia naquela altura e não havia sequer no começo das democracias do século XX. A dúvida é até onde é que isso irá ao longo do século XXI. Parará algures? Ou, com as formas instantâneas de comunicação social ao acesso de qualquer pessoa, tudo o que é exercício do poder político e tudo o que respeita aos titulares de poder político passa a ser conhecido instantaneamente em todo o mundo? Como será no futuro? Não sabemos."

Marcelo não se queixa dessa visibilidade permanente, e usa-a para criar uma proximidade que lhe vale altos índices de popularidade - ou seja, poder. Mas admite que esta "exposição muito grande do poder político (...) significa pagar um preço - o próprio e todos os que o rodeiam; por outro lado, significa também um escrutínio, um controlo do poder político, muitíssimo mais apertado." Daí resulta um receio de que "haverá, porventura, cada vez menos disponíveis" para a atividade política.

A Cidade Proibida, monumento mais visitado em Pequim, é a memória de um tempo em que o poder estava distante do povo
Filipe Santos Costa

Harmonia suprema com o povo

Já que o momento se prestava a paralelismos de vária ordem, um jornalista perguntou ao PR se na sua residência oficial, em Belém, alguma sala poderia ter o mesmo nome de um dos pavilhões da Cidade Proibida, chamado "da Harmonia Suprema". "Todas" - respondeu Marcelo de rajada - "Com todos os presidentes, e provavelmente até com os vários monarcas que lá viveram. Pense, na I República, o esforço de harmonia suprema que presidiu à atividade de inúmeros responsáveis que por lá andaram..."

O mesmo, continuou, na atualidade. "O papel do PR na Constituição de 1976 é um papel de construção da harmonia suprema. Um poder moderador, que em rigor vem da Carta Constitucional da monarquia portuguesa", explicou o Marcelo-constitucionalista.

E a visita não terminou sem Marcelo demonstrar aos chineses, que não estão habituados a estas coisas, o que é ser um Presidente em harmonia suprema com o povo. À saída da Cidade Proibida, uma pequena multidão de curiosos aguardava de telemóveis no ar para fotografar quem quer que fosse essa pessoa que merecia tanto aparato policial e de segurança. Antes de ir para o carro oficial, Marcelo fez o desvio que se impunha, para cumprimentar o povo que lhe acenava - tocou-lhes, sorriu-lhes, deixou-se fotografar ali mesmo, à mão de semear. O povo, mesmo que não soubesse quem ele era, gostou. Marcelo bem diz que não gostaria de ser um imperador longínquo e invisível. Mas nasceu para ser um Presidente próximo e mediático.

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