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Política

Um Presidente é isto: Marcelo, a figura nacional do ano para o Expresso

Presidência não se limitou a ser amaciador. Ocupou, com estrondo e eficácia, os vazios do poder executivo

Marcelo Rebelo de Sousa falhou, há um ano, a eleição da redação do Expresso para figura nacional de 2016. Ganhou António Guterres, mas as razões para ter sido Marcelo eram imensas: um ano em Belém tinha chegado e sobrado para o novo Presidente da República impor um estilo tão diferente, tão informal, tão desaustinado e tão próximo que a sua popularidade atingiu níveis ímpares e tornou-se óbvio que Marcelo tinha um caso (muito sério) com o país.

No léxico político entraram dois novos chavões, afetos (que este PR usa como nunca antes se viu) e selfies (que tira a eito e com aparente gozo), mas o mais surpreendente foi ver o Presidente que vinha da direita andar como, se nada fosse, com o primeiro-ministro de esquerda ao colo.

O PSD vivia dias de azia mas não se atrevia a estragar a festa. E o país rendia-se ao chefe do Estado que era capaz de animar a malta, de desdramatizar a ‘geringonça’, de se focar no essencial, de ajudar a descomprimir dos anos de sacrifício e de puxar com eficácia pela autoestima nacional. Uma espécie de coach topo de gama, que o Expresso escolheu deixar correr mais um ano. Para perceber melhor a figura.

Fez bem. Em 2017, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou que apenas tinha estado a aquecer os motores e que, agora sim, uma vez encorpado o elo de confiança e cumplicidade com a esmagadora maioria dos portugueses, chegara o tempo de mostrar que tipo de Presidente da República ele queria ser. Num regime semipresidencialista muito dado a discussões sobre até onde pode ir o chefe do Estado, o Marcelo catedrático e professor de Direito Constitucional começou a fazer o gosto ao dedo. Com ele, mostrou-nos 2017, o Presidente manda. E não se chama chefe de Estado por acaso. Chama-se chefe de Estado porque não prescinde de zelar pelo cumprimento dos deveres do Estado. Infelizmente, o ano deu-lhe várias oportunidades para acionar com estrondo as campainhas.

Logo em janeiro, no discurso de Ano Novo, Marcelo sinalizou vontade de virar a agulha para um novo patamar de exigência. A estabilidade social e política garantida pelo acordo das esquerdas era “indesmentível”. Mas o crescimento económico era “insuficiente”. Registada a “nega” na caderneta de António Costa, começava a perceber-se o verdadeiro sentido da alcunha que o PR tinha escolhido para o chefe de Governo. “Otimista irritante” era, afinal, um pau de dois bicos e Marcelo preparava-se para subir a parada. Na altura, nem ele sonhava quanto.

Estando o país a entrar num ano eleitoral, com autárquicas a meio, o normal era o Presidente da República recatar-se. E Marcelo Rebelo de Sousa escolheu dois temas de longo curso — os sem-abrigo e a eutanásia — para ir ocupando a agenda. Mas manteve “olho vivo” para o que ele próprio antecipara: que 2017 marcaria, muito provavelmente, um novo ciclo político. A sua previsão só falhou por defeito.

As autárquicas foram o menos numa sequência desastrosa — crises com ministros, Pedrógão, Tancos, legionela — em que o Governo, embora sempre a somar nas frentes orçamental e económica, se viu inesperadamente mergulhado. O Presidente da República não se limitou neste segundo ano do seu mandato a ser amaciador. Pelo contrário, ocupou, com estrondo e eficácia, os vazios do poder executivo.

Um Presidente é isto: Marcelo, a figura nacional do ano para o Expresso
José Carlos Carvalho

Casos não faltaram. Um ministro das Finanças na corda bamba por ter garantido ao presidente da Caixa Geral de Depósitos isenção de declarar património vendo-se obrigado a recuar? Marcelo decretou a obrigatoriedade inquestionável da declaração do banqueiro e comunicou ao país que só não pediu a cabeça do ministro “por estrito interesse nacional/estabilidade do sistema financeiro”. Um roubo de material militar em Tancos apanhou o primeiro-ministro de férias e deixou o Governo aos papéis? O Presidente tomou conta da ocorrência, arrastou o ministro da Defesa para o local e admitiu em público (com gozo?) ter chegado “ao limite” dos seus poderes. O horror repetido dos fogos no centro do país deixou o Governo entre o ausente e o abananado? Marcelo foi um show de presença, sentimento, proximidade, exigência, denúncia e esperança.

As fotos do seu consolo aos aflitos correram mundo e chegaram à “Time”. E a comunicação que fez ao país a pedir desculpa pelas falhas do Estado, a empurrar a ministra da Administração Interna, a exigir responsáveis e indemnizações e a pedir que o Parlamento confirmasse a legitimidade da maioria, foi um tal soco no estômago que o PS reagiu: “Chocados!”. “Chocado está o país”, respondeu a figura nacional do ano.

Com o aval que em 2016 tinha cimentado junto do povo, o Presidente mostrou em 2017 que depois dele o conceito de Presidente corta-fitas está definitivamente arrumado: ele é o real fiscalizador do sistema, disposto a preencher todos os vazios e a orientar as prioridades do Estado e, quando o Estado falha, implacável na assunção de responsabilidades. Nos fogos, o poder foi ele. No surto de legionela, com mais mortos, foi ele outra vez. A chegar primeiro, a exigir conclusões rápidas, com olho posto nas cativações do Orçamento. Vítor Matos, o jornalista que escreveu a biografia de Marcelo Rebelo de Sousa, resumiu a coisa assim: com este PR, a magistratura não é de influência, é “de interferência”.

Viu-se quando avisou que Orçamentos do Estado eleitoralistas não passam; quando travou as exigências dos professores nas promoções nas carreiras (“uma ilusão”) ; quando puxou pelas tropas portuguesas nas missões da NATO, não vão o BE e o PCP ter ideias; quando atraiu meio mundo do Governo de esquerda atrás dele para o Santuário de Fátima; quando manobrou a favor de apoios aos empresários no próximo OE; quando avisou Mário Centeno de que antes de ser presidente do Eurogrupo é ministro das Finanças de Portugal; quando deitou água na fervura da saída de Portugal do lixo: “Euforias não é bom”. Cansativo? Goste-se ou não, ele mudou a Presidência da República.

É que Marcelo mete a mão na massa como quem faz festas. Melhor, enquanto faz festas ao seu principal aliado, “o povo que mais ordena”, expressão que usou, em 2016, no discurso de vitória. Em 2017, confirmou ser um Presidente que vai a todas, tão obcecado pela proximidade que, desde a queda de uma avioneta em Tires até a um acidente numa fábrica de pirotecnia no norte, aparece sempre. Um Presidente que fala “tu cá, tu lá” com todos, seja com a rainha de Inglaterra, que conseguiu pôr a rir, nos salões de Buckingham — “quando foi pela primeira vez a Portugal eu estava lá. Era um miúdo” —, seja quando se senta no chão ao lado de um sem-abrigo a quem leva comida — “Queres mais um papo seco?”. Marcelo fala sempre para português perceber, seja da abstenção — “se não querem escolher, depois não se queixem” —, seja do estado atual do jornalismo — “pintado com cores escuras” —, seja para corrigir António Costa, que considerou este ano “saboroso”. Saboroso, o ano em que morreram mais de 100 pessoas com negligência pública? Marcelo corrige: “Este ano teve o melhor e o pior”. O velho slogan socialista “Os portugueses não são números, são pessoas” voltou em força, pela mão do Presidente de direita.

Imbatível (e ainda a subir) nos estudos de opinião, Marcelo Rebelo de Sousa foi, em 2017, o principal consolador nas horas difíceis, o ombro mais próximo, o grito de alerta, o duro agente de pressão sobre o poder executivo, o “grilo falante” da cena nacional. Dele, diz o próprio: “O Presidente da República tem uma memória de elefante. Ele não se esquece”. Marcelo, em 2017, é inesquecível.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: AVSilva@expresso.impresa.pt

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