"O facto de a boca beijar, comer e falar devia só por si sugerir àqueles que se agarram ao que é evidente e palpável a ideia de que estamos absolutamente perante o ininteligível". Quem o disse foi o escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal, num livro de aforismos e pensamentos a que deu o perfeito título de 'Livro dos Amigos'. 2020 foi o ano que nos escondeu a boca atrás de uma máscara. Quantas vezes deu por si a sentir-se observado pelos outros e a perceber ‘ups, esqueci-me da máscara dentro de casa’? Pois. Eu também. Ana Luísa Amaral deu por ela à porta da farmácia a falar com a sua pequena cadela como se conversasse com um humano. “Quando reparei, tinha uma vizinha a olhar para mim” - diz-nos ao telefone. Para a poeta é no sorriso - e portanto na boca - que encontramos o espelho da alma. 2020 foi o ano que nos escondeu o sorriso, mas destapou dois rostos. Como Janus. O do bem, com ondas de solidariedade entre família, vizinhos e comunidade. E o do mal - em tantos casos de violência doméstica, institucional e online.
2020 foi um ano duro. Conseguimos resumi-lo numa só palavra? Provavelmente não. 2020 foi um ano traumático. Horroroso. Difícil. Triste. Limitativo. Perturbador. Intenso. Foi um ano de força. De vizinhança. De casa. Foi um ano de solidão. E de introspecção. Foi um ano de muitas notícias. De epidemiologistas, virologistas, médicos, muitos médicos e enfermeiros nas notícias. Fecharam-nos os restaurantes, os bares, as discotecas. Mas não nos tiraram a música nas colunas no quarto ou nos auscultadores ligados ao telemóvel. O teatro resistiu. As livrarias e as editoras também. 2020 foi um ano de resistência. Para a cultura, para a restauração, para o comércio, para todos. Foi desgastante. Agora sabemos o que é a ‘fadiga pandémica’. E temos todos saudades de abraços e de beijos e de festas de aniversário e de jantares de grupo e de concertos e de viagens e de não ter medo. Temos saudades de uma certa leveza. De acordar e não pensar em máscaras nem desinfetantes. Queremos muito acordar. E fazer planos sem restrições da DGS e do Governo. Sem regras apertadas. Estamos cansados. 2020 foi o ano do Serviço Nacional de Saúde. O SNS está vivo e precisa de nós, do Estado. O ambiente também. Anda um iceberg à solta prestes a bater na Georgia do Sul. Estamos acordados para muitas questões que vão ecoar nos próximos anos.
2020 foi muito isto: o vírus SARS-COV-2, as alterações climáticas, o racismo, as teorias da conspiração e a tecnologia. É muito bom ter telemóvel e internet, mas é muito mau começar a trabalhar às 9h e não ter hora para parar. É muito bom ter condições financeiras para adquirir tablets e portáteis, mas é muito mau deixar horas a fio crianças ligadas a computadores. Para onde vamos? Queremos mesmo perder direitos laborais, civis e educacionais que custaram séculos a alcançar? 2020 foi o ano dos stickers. Foi o ano do digital. Estivemos e estamos nesta passagem de ano a viver tudo online. WhatsApp, Spotify, Facebook. TikTok. Email. Newsletters. Podcasts. 2020 foi o ano das notícias. Da importância de correr atrás dos factos. E de defendê-los sem tréguas. Estamos todos cansados de máscaras, mas estamos todos acordados. No tal 'Livro dos Amigos', Hofmannsthal escreveu: "As circunstâncias têm menos força do que se pensa para nos tornarem felizes ou infelizes; mas a antecipação de circunstâncias futuras na fantasia tem uma força descomunal." Nesta passagem de ano, alimente a fantasia e a esperança. O futuro está à sua espera. E se o futuro lhe der uma máscara, desenhe-lhe uma boca por cima. Adeus, 2020. Olá, 2021.
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