“Sou inteiramente capaz de decidir se quero reproduzir-me, mas se os meus pais tivessem dito o contrário ao médico, hoje não podia fazê-lo”
A luta de Tiago Fortuna está a dar frutos. Em 2024, não será cobrado IVA aos acompanhantes de pessoas com deficiência nos espetáculos. Fazer um plano de mobilidade para Lisboa e lançar um debate sério sobre a lei portuguesa, que ainda permite a esterilização de pessoas com deficiência, são outras batalhas a travar. Oiça aqui o episódio do podcast Ser ou não ser
Tiago Fortuna é cofundador, juntamente com Jwana Godinho, da Access Lab, startup portuguesa que se dedica a garantir o acesso de pessoas com deficiência e surdas à cultura. “Queríamos um negócio social, com impacto social, mas que fosse também economicamente sustentável”, afirma Tiago. Criaram uma sociedade por quotas. “Acredito que todos na sociedade devemos ser considerados potências económicas. Acredito também nisto para as pessoas com deficiência, que são completamente apagadas nesse sentido”. Pessoas com deficiência não são deficientes. Porque há sempre uma pessoa por detrás daquela característica: “Eu sou o Tiago. Apaixonado por música, arte, leitura e, por acaso, tenho uma deficiência”.
E se o mundo fosse ao contrário? Já tem uns anos, mas voltou a circular nas redes sociais uma campanha publicitária sobre acessibilidade realizada pela EDF, empresa de eletricidade francesa que pretende mostrar como é viver num mundo que não está projetado para nós. Exemplo? Todos os livros são escritos em braile e o atendimento nas lojas é em língua gestual, entre outras coisas. O que leva uma pessoa sem deficiência a sentir-se deslocada, perdida e muitas vezes sem entender a informação. Para Tiago Fortuna, este é o tipo de campanha que traz a representatividade para cima da mesa. “Espero que tenha impacto na vida de quem a fez e de quem a viu”.
José Fernandes
Quando questionado sobre como vê a inclusão, sendo uma pessoa com deficiência, Tiago Fortuna admite que passa por aprender a traçar linhas vermelhas. “O que estou ou não disposto a fazer, a aceitar e a não aceitar”. Quando uma pessoa comete uma simples gralha, ou se está a ser paternalista ou condescendente: “É um equilíbrio complicado. Tem um impacto emocional e psicológico muito forte quando estamos a trabalhar com questões de representatividade”. Porém, esta é a sociedade em que vivemos e que tem uma cultura de inclusão muito recente.
“Só temos uma Secretária de Estado da inclusão desde 2015”. Tiago confessa que “o paternalismo e a condescendência foram os maiores obstáculos” que já teve de ultrapassar. Muitas vezes a sociedade não entende como uma pessoa com deficiência consegue, mas Tiago lança uma série de questões para colocar o dedo na ferida: “Como é possível esta pessoa ter um discurso articulado? Como é possível estar nos corredores do jornal Expresso? Como é possível fazer várias viagens num ano e com um grupo de amigos diferente? Como é que as pessoas com deficiência ousam cobrar para dar um testemunho, ou formação? Tudo é altamente questionado”.
José Fernandes
Alexandra Teixeira é mãe de um jovem trans de 23 anos e vice-presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Liberdade de Género (AMPLOS)
Porém, a luta de Tiago Fortuna na Access Lab não tem sido em vão. O novo Orçamento de Estado de 2024 anunciou IVA zero nos bilhetes de acompanhante de pessoas com deficiência. “Vejo esta medida com muita felicidade. Se as pessoas não tiverem dinheiro para ir a um espetáculo, tendo em consideração que a maioria necessita de ser acompanhada, logo é um custo extra, essa pessoa não irá participar. Ficará excluída”. O nosso convidado do podcast SER ou Não SER aproveita este momento para lançar um repto publicamente sobre a rede de teatros e cineteatros portugueses. Tem 90 equipamentos espalhados pelo país, mas “nem todos têm ainda esta medida. O que é um pouco paradoxal.”
Falou ainda das Jornadas da Juventude, salientando que foi o evento mais bem organizado em termos de acessibilidade que viu até hoje em Portugal. O que aconteceu, então, para tantos o terem criticado? “As ruas de Lisboa não estão adaptadas para pessoas com deficiência. Não foi o evento em si. São as estradas, são os passeios. Há muito trabalho a ser feito”. E dá o exemplo de como fazem na sua empresa. Estão a trabalhar numa exposição da Culturgest. Uma das coisas que fizeram foi um plano de mobilidade urbana: “contratámos um consultor, que é uma pessoa com deficiência, para desenhar como se chega àquele espaço. Isto é contribuir para que todos possam participar no espaço público”.
Esta partilha levou-nos à experiência ‘Dialogue in the Dark’, ou seja, diálogo no escuro. Uma exposição em que os visitantes são guiados por invisuais através de ambientes diários. Tiago Fortuna diz que a experiência mais imersiva que a Access Lab está a fazer são os coletes sensoriais de música para surdos e que muitos já testaram. Por isso, decidiram que não vão, por exemplo, colocar pessoas sentadas durante 10 ou 20 minutos numa cadeira de rodas, talvez num ambiente de museu exista outra predisposição, mas em sociedade, consideram que não. “Fazer isso em dez minutos; o tempo que os políticos têm... Ficariam a pensar que a nossa vida é uma tragédia terrível e em 10 minutos não dá para sentir o que eu sinto em 30 anos, sentado na minha cadeira”. Por isso, Tiago, promete não fazer esse tipo de experiência imersiva e brinca: “Não vamos sentar o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, numa cadeira de rodas. Vamos antes falar com ele sobre que medidas está a tomar para melhorar a vida dos cidadãos com deficiência”.
Terminamos o nosso podcast com o filme Forrest Gump, interpretado pelo ator Tom Hanks. Um filme de 1994, que foi um êxito de bilheteira. Nomeado para 13 Óscares, ganhou seis, entre os quais melhor filme, melhor realizador e melhor ator principal. Gump era um rapaz que vivia nos Estados Unidos e tinha um coeficiente intelectual menor do que o normal. Tinha também uma forma diferente de ver o mundo. Pode dizer-se que vivia ao sabor do vento, numa realidade só sua, quase alheia ao que se passava à sua volta. Ainda assim, ele estará presente em quase todos os acontecimentos importantes do seu país, conhecendo pessoas célebres como o presidente Kennedy ou John Lennon, tornando-se ele próprio uma espécie de herói americano ao combater no Vietname. Apesar de o chamarem “idiota” e de ter sofrido ‘bullying’ na sua comunidade, Forrest Gump sempre se achou uma pessoa capaz. A sua mãe (Sally Field) educou-o com autoconfiança e sempre o incentivou a acreditar em si. Apaixonado desde sempre pela sua melhor amiga Jenny (Robin Wright Penn), uma das mensagens mais fortes deste filme é que Forrest Gump foi pai. Contra todas as expetativas. Se esta história tivesse sido narrada em Portugal, na Hungria ou na Chéquia, os três estados-membros que ainda não alteraram a lei que permite a esterilização de menores (Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996), poderia não ter sido...
Tiago Fortuna revela que passados dez anos voltou a rever este filme e confessa que soube apenas recentemente da existência dessa possibilidade de esterilização em Portugal. Ficou profundamente chocado. “Sou inteiramente capaz de decidir se quero ou não reproduzir-me, mas se os meus pais tivessem dito a um médico o contrário, hoje não o poderia fazer”. Na sua opinião, temos de pensar sobre isto. “Não consigo colocar as coisas preto no branco. Se é completamente errado? Sei que não é correto”. No seu entender, tal como está agora a lei, não é uma política ajustada à atualidade, nem à sociedade que estamos a construir.
'Ser ou não ser' é um podcast semanal sobre o mundo da sustentabilidade, da ecologia e da responsabilidade. A cada episódio, mergulhamos em tópicos relevantes, desde práticas individuais até iniciativas globais, com convidados apaixonados por este tema. Damos voz a líderes de empresas, ativistas, empreendedores e especialistas, para partilharem experiências e soluções inovadoras para um futuro mais sustentável. 'Ser ou Não Ser' é um podcast do Expresso SER, com moderação da jornalista Teresa Cotrim e o convidado residente Frederico Fezas Vital, professor e consultor na área da inovação social, impacto e empreendedorismo. A coordenação está a cargo de Pedro Sousa Carvalho.