“Há apenas um pedopsiquiatra no Algarve e trabalha 10 horas por semana no SNS. A região tem meio milhão de pessoas, como se resolve isto?”
O mais recente episódio do podcast "Que Voz é Esta?" é dedicado às políticas públicas de saúde mental, numa altura em que a reforma pensada para esta área avança lentamente e enfrenta vários obstáculos, desde a falta de profissionais e equipas à ausência de financiamento para programas de prevenção da doença mental nos centros de saúde.Ouça as explicações do coordenador nacional, Miguel Xavier, e do antigo responsável pela área, José Miguel Caldas de Almeida
Há uma “falta gritante” de profissionais de saúde mental no SNS, não só psiquiatras, mas também psicólogos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros especializados, reconhece o coordenador nacional das políticas de saúde mental. A dificuldade de contratação de recursos humanos é um dos principais entraves à concretização da reforma que há anos está pensada para esta área, atrasando a abertura de serviços de internamento psiquiátrico em áreas onde há escassez.
Há unidades que estão prontas a abrir há meses, como a do Centro Hospitalar do Oeste (CHO) ou um serviço de internamento para adolescentes no Centro Hospitalar de Lisboa Norte, que ainda não começaram a funcionar por falta de pessoal. “O CHO é um caso que me preocupa porque as obras terminaram em fevereiro e, quase um ano depois, ainda não há contratações”, lamenta Miguel Xavier, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”
A área da psiquiatria da infância e da adolescência é aquela que apresenta maiores carências. No Algarve, por exemplo, há apenas um pedopsiquiatra e que só trabalha 10 horas por semana para o Serviço Nacional de Saúde, o que obriga os casos mais graves a serem encaminhados para Lisboa.
No caso dos psicólogos, o coordenador nacional garante que está a pedir ao Governo desde 2020 a contratação de mais profissionais, mas não teve resposta. Sem acesso a psicoterapia no SNS, Miguel Xavier admite que grande parte das pessoas com problemas de ansiedade ou depressão, por exemplo, não tem nenhum tratamento além da medicação, o que ajuda a explicar que Portugal seja um dos países europeus com maior prescrição de psicofármacos.
O responsável lembra que, no âmbito da reforma da saúde mental, está prevista a criação de programas de prevenção e tratamento da ansiedade e depressão nos centros de saúde, nomeadamente com recurso à psicoterapia, mas estes ainda não saíram do papel e nem sequer foram dotados de financiamento. “O grande problema é que quando se vai ver os fundos atribuídos a esses programas, de facto não está lá nada”, critica.
Ainda assim, o coordenador nacional sublinha que a contratação de profissionais por si só não chega. É preciso uma reorganização dos serviços e da forma de trabalhar, o que passa por uma mudança de mentalidades que, muitas vezes, é o mais difícil, diz.
Décadas de avanços e recuos
Igualmente convidado neste episódio, o psiquiatra José Miguel Caldas de Almeida, que foi coordenador nacional da saúde mental entre 2006 e 2011, altura em que foi conseguido o fecho do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, sublinha a dificuldade de pôr em prática uma reforma nesta área.
“A reforma da saúde mental é das mais complexas que existem. Não é como nos outros ramos da Medicina, em que basta pôr mais dinheiro, comprar máquinas mais modernas e ter intervenções mais diferenciadas. Implica mudar de modelo”, explica.
José Miguel Caldas de Almeida foi coordenador nacional para a saúde mental entre 2006 e 2011
Os princípios desta reforma estão identificados há muito. O encerramento de hospitais psiquiátricos e a transferência dos doentes para estruturas residenciais de pequena dimensão, por exemplo, e a aposta em cuidados ambulatórios, com o apoio de equipas na comunidade, são algumas das traves-mestras da mudança de paradigma na saúde mental, que já foi concretizada há décadas noutros países europeus.
“A não ser que Portugal queira ficar numa posição de aldeia gaulesa, é muito difícil não avançar para esta reforma. Mas tem havido, de facto, alguns atavismos”, admite Miguel Xavier.
A desinstitucionalização dos doentes internados há anos em hospitais psiquiátricos está parada, uma vez que ainda não foram criadas as estruturas alternativas que os vão receber e que vão contar com 500 vagas.
Também o reforço das equipas comunitárias tarda em avançar, já que as dez que deveriam ter sido criadas este ano - cinco de adultos e cinco de crianças e jovens - ainda não saíram do papel.
Para Caldas de Almeida, a falta de atenção dada à área da saúde mental no país não tem ajudado. “Ao contrário do que aconteceu noutros países, como Espanha ou Itália, em que sempre houve uma massa crítica enorme, nomeadamente para fechar os asilos psiquiátricos, em Portugal nunca ouvi muitas vozes a fazer força para se mudarem as coisas, seja na imprensa, entre os profissionais ou na população. O problema é que, por qualquer razão, a perceção pública da necessidade desta reforma sempre foi muito pequena”, lamenta.
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.