“A doença mental depende de múltiplos genes e da interação entre estes e o contexto social”
Quais são as causas da doença mental? E como evoluiu o conhecimento sobre as mesmas, desde o aparecimento da psiquiatria moderna, há cerca de 200 anos, até aos dias de hoje? No novo episódio do podcast “Que Voz É Esta?”, José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e professor na Nova Medical School, e Bernardo Barahona Corrêa, psiquiatra e investigador de neuropsiquiatria na Fundação Champalimaud, em Lisboa, dão resposta a estas e outras questões sobre saúde mental
Não é possível perceber a origem de uma doença mental sem considerar vários fatores, nomeadamente biológicos, genéticos, psicológicos e sociais. “Há um consenso grande em torno da ideia de que a doença mental não tem uma causa única, podendo estar associada a diferentes fatores que interagem constantemente entre si”, assegura José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e professor na Nova Medical School, no mais recente episódio do “Que Voz É Esta?”, o podcast do Expresso sobre saúde mental.
No episódio lançado esta sexta-feira, o ex-coordenador nacional para a saúde mental explica que “vários fatores genéticos ou biológicos só são ativados em função de fatores sociais” como o estatuto socioeconómico, a privação financeira, o nível de qualificações e as desigualdades sociais. “Graças aos estudos epidemiológicos que foram sendo feitos, e que constituíram, a partir dos anos 80 do século passado, um importante avanço nesta área, sabemos que a prevalência da esquizofrenia em pessoas com menos rendimentos é 3,5 vezes maior do que em pessoas de estratos económicos mais altos e na depressão a diferença é cerca do dobro”, exemplifica.
A explicação para essa diferença, entre outros fatores, tem a ver com o facto de as pessoas mais pobres “terem problemas na vida muito maiores do que as mais ricas e enfrentarem situações de muito stresse”, desde logo porque não têm dinheiro nem segurança no emprego e vivem em casas com menos condições. De acordo com Caldas de Almeida, o stresse crónico está associado ao aparecimento de várias doenças, físicas e mentais, “através de vias neurofisiológicas, imunológicas e endócrinas”.
A interligação entre fatores biológicos, psicológicos e sociais faz com que seja necessário o contributo de diferentes áreas de estudo, da psiquiatria e psicologia à neurologia, farmacologia e sociologia, para compreender — e tratar — a doença mental. “Estamos condenados, e bem, a colaborar uns com os outros”, sublinha.
Oiça aqui o episódio:
Mas nem sempre foi assim. Durante o século XIX, foram propostas, com algum fulgor, várias teorias sobre a transmissão hereditária da doença. Mais tarde, já na viragem para o século XX, Sigmund Freud e os seus seguidores defenderam que, na base de tudo, estariam traumas, conflitos e outras experiências ocorridas na infância, o que fez crescer o interesse em torno das causas psicológicas da doença mental. Já a partir da década de 1950, com o avanço das neurociências e o aparecimento dos primeiros psicofármacos, começou a ganhar força a ideia de que todas as explicações residiam essencialmente na biologia e, mais recentemente, a investigação centrou-se na componente genética. Hoje, no entanto, é sabido que todos estes fatores desempenham um papel importante no aparecimento e manutenção da doença mental.
“A história da descoberta das causas da doença mental é fascinante, pela persistência com que foram sendo defendidas diferentes abordagens, com algum fanatismo e ignorância à mistura”, diz Caldas de Almeida. Ainda assim, todas essas “correntes” foram cruciais para o que sabemos hoje, “não tanto por aquilo que conseguiram explicar, mas pelo que não conseguiram”, acrescenta.
José Miguel Caldas de Almeida foi coordenador nacional para a saúde mental
Inês Duque
“Graças aos estudos epidemiológicos que foram sendo feitos, e que constituíram, a partir dos anos 80 do século passado, um importante avanço nesta área, sabemos que a prevalência da esquizofrenia em pessoas com menos rendimentos é 3,5 vezes maior do que em pessoas de estratos económicos mais altos e na depressão a diferença é cerca do dobro.”
Embora se tenha depositado muita “esperança” na investigação sobre a componente genética das doenças mentais — e o tema até suscite o interesse e a curiosidade do público em geral —, Bernardo Barahona Corrêa, psiquiatra e investigador de neuropsiquiatria na Fundação Champalimaud, em Lisboa, ressalva que o contributo desta área tem sido “modesto”. “Em nenhuma doença mental existe um fator genético principal, ou seja, não há um gene da esquizofrenia ou um gene da bipolaridade”. As doenças psiquiátricas “são determinadas por um número enorme de genes que têm um pequeno efeito”, na medida em que cada um deles apenas aumenta ligeiramente o risco de alguém vir a sofrer da patologia. Podem criar uma maior predisposição para a doença, mas isso não significa que essa venha a desenvolver-se. “A doença mental depende de múltiplos genes e da interação entre estes e o contexto social, o que dificulta a investigação nesta área”, salienta.
Há doenças mentais mais hereditárias do que outras. A esquizofrenia, a doença bipolar, as perturbações do espectro do autismo e a perturbação de hiperatividade e défice de atenção são algumas das que apresentam, na sua génese, uma componente genética maior, explica o professor de psiquiatria na Nova Medical School, igualmente convidado no mais recente episódio do podcast “Que Voz É Esta?”.
Bernardo Barahona Corrêa, psiquiatra e investigador de neuropsiquiatria na Fundação Champalimaud
Inês Duque
A grande evolução do conhecimento na área da saúde mental ajudou a desmistificar a doença. “Já não é vista como uma marca de inferioridade pela população em geral e é mais fácil aceitar a ideia de consultar um psiquiatra”, diz Bernardo Barahona Corrêa. Ainda assim, persistem ideias erradas, inclusivamente dentro da comunidade médica. “Continua a haver uma visão muito negativa da saúde mental dentro do sistema de saúde”, sendo a psiquiatria encarada como uma “disciplina pouco científica” e a doença mental como uma “fraqueza moral, própria de quem não tem mais nada em que pensar”. “Este tipo de doenças continuam a ser muito estigmatizadas, desvalorizadas e maltratadas”, lamenta.
Para José Miguel Caldas de Almeida, é a ignorância que está na base destas ideias. “O estigma aparece porque todos nós temos medo da loucura. Assusta-nos a ideia de que a qualquer momento podemos perder o controlo sobre o que pensamos e dizemos. Foi sempre assim ao longo da história e continuará a ser.” Mas o medo parece estar a ser atenuado e há uma preocupação cada vez maior com a integração destes doentes. “Estamos numa fase da História em que grupos que foram completamente maltratados, excluídos e vítimas das piores tropelias que a Humanidade soube inventar, como as mulheres e as pessoas LGBTQI+, lutam em conjunto pelos seus direitos. Também as pessoas com doença mental já não estão sozinhas”, garante.
Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.
Filipa Almeida, analista de dados de 28 anos, foi a convidada do episódio do podcast "Que Voz é Esta?" dedicado à auto-estima. Cresceu a acreditar que não é boa o suficiente ou merecedora do amor dos outros