“As pessoas com depressão ficam diferentes, não estão disponíveis para o diálogo, não colaboram e, no trabalho, começam a desinteressar-se”
O contexto socioeconómico pode contribuir para o aparecimento de depressão e estão criadas, atualmente, algumas das condições para isso. “Tem havido muitas situações de instabilidade no emprego e dificuldades em manter uma habitação própria. São fatores que vulnerabilizam as pessoas e fazem com que, numa situação de desespero e angústica, achem que já não faz sentido continuar a lutar.” Oiça aqui o sétimo episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, com Miguel Cotrim Talina, diretor do serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental e professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, e “António”, que é reformado, vive em Lisboa e teve o seu primeiro episódio depressivo aos 69 anos
Miguel Cotrim Talina,diretor do serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental
NUNO FOX
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão é o problema de saúde mais prevalente na União Europeia, afetando cerca de 50 milhões de pessoas. Segundo estas estatísticas, 11% da população irá sofrer um episódio depressivo ao longo da vida, sendo a depressão a segunda maior causa de incapacidade. Portugal ocupa a 5ª posição entre os países com mais casos – cerca de 7% dos portugueses estão diagnosticados com esta doença, de acordo com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.
Reformado e natural de Lisboa, António (nome fictício a pedido do próprio) teve o seu primeiro episódio depressivo aos 69 anos. Atualmente com 71, recorda o que sentiu na altura: “Sentia-me sozinho e afastado até dos meus familiares. Era como se vivesse noutro planeta. Quase não reconhecia a minha própria identidade. Houve um desfasamento em relação a mim próprio que me surpreendeu”.
Perdeu a "energia" para as atividades que fazia antes - teatro, leitura e convívio com amigos - e a sua vida ficou “reduzida a quase nada”, conta António, em entrevista ao podcast “Que Voz é Esta?”. “Sentia uma tristeza e falta de esperança profundas. Nunca me tinha acontecido nada assim.” Ao fim de alguns meses, procurou ajuda. “Percebi que sozinho não ia a lado nenhum. A minha fé desaparecera e eu tinha vontade de desistir”.
Uma grande parte das perturbações psiquiátricas surgem tipicamente na adolescência ou no início da vida adulta, mas a depressão pode surgir em qualquer altura da vida, independentemente da idade e sem que haja um passado de doença, explica Miguel Cotrim Talina, diretor do serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental e professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.
Como fatores que podem desencadear a doença numa fase mais avançada da vida, o especialista elenca a diminuição das interações sociais, solidão, viuvez, saída dos filhos de casa e o envelhecimento cerebral, bem como o aparecimento de doenças físicas. A depressão na população idosa é frequente, mas a doença nem sempre é diagnosticada ou não é diagnosticada de forma atempada, por ser confundida com outras, como a demência, alerta o médico.
NUNO FOX
Em 2010, data do primeiro e único estudo epidemiológico nacional sobre saúde mental feito em Portugal, a depressão era a segunda doença psiquiátrica mais comum entre os portugueses. Desde então, ocorreram situações muito marcantes no país do ponto de vista económico e social, desde a crise financeira que levou a um pedido de ajuda externa, até à pandemia de covid-19 e à guerra na Ucrânia. A inflação aumentou, o custo de vida também, e há atualmente grandes dificuldades em ter uma habitação digna e aceder aos cuidados de saúde públicos.
O contexto socioeconómico influencia o aparecimento de doença mental e Miguel Cotrim Talina não tem dúvidas de que, se o estudo fosse realizado hoje, teríamos uma prevalência de depressão ainda maior. "Tem havido muitas situações de instabilidade no emprego e dificuldades em manter uma habitação própria. São fatores que vulnerabilizam as pessoas e fazem com que, numa situação de desespero e angústia, achem que já não faz sentido continuar a lutar."
“As crenças antigas sobre loucura e os tratamentos usados na doença mental persistem hoje em dia. Ainda há alguma ignorância e falta de literacia em saúde, sobretudo na área da saúde mental"
O médico, que é também membro da direcção da ARIA - Associação de Reabilitação e Integração Ajuda - uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) dedicada à reabilitação de pessoas com doença mental, considera ainda que, apesar de se falar cada vez mais sobre saúde mental, a o problema do estigma ainda não foi ultrapassado. A depressão continua a trazer vergonha, medo e culpa.
“As crenças antigas sobre a loucura e os tratamentos usados na doença mental persistem hoje em dia. Ainda há alguma ignorância e falta de literacia em saúde, sobretudo na área da saúde mental.” António concorda: “Os outros acabam por se afastar de nós, embora o neguem. Ainda há estigma em relação à depressão e muita incompreensão. Eu não falo abertamente sobre a doença que tive porque receio atitudes hostis.”
Para resolver isto, Miguel Cotrim Talina defende que é "necessário que as empresas também cuidem da saúde mental dos trabalhadores, através da Saúde Ocupacional". "Tem de haver um esforço de todos os setores da sociedade. A doença mental não deve ser encarada como um drama. É um problema de saúde como os outros. Há tratamento, acompanhamento e recuperação."
Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos
Cristina Amaro, CEO da The Empower Brands House e autora do livro "Chief Love Officer
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.