Que voz é esta?

“Até nos hospitais há uma negação da morte, é um tabu. Para fazer um luto menos traumático, é preciso encarar a morte com naturalidade”

“A morte é um momento sagrado como o nascimento. Ter o apoio da comunidade faz toda a diferença para quem cá fica.” A morte foi removida do espaço público, mas é necessário criar mais respostas de apoio ao luto nos serviços públicos, para evitar processos traumáticos. “Ter uma morte humanizada é um grande fator de proteção para quem fica e tem de lidar com a perda.” Oiça aqui o quinto episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, com Lídia Rego, psicóloga que trabalha na área do luto e dos cuidados paliativos em contexto hospitalar, e Maria Cazenave, que tem 36 anos, é de Lisboa, e perdeu a mãe recentemente

“Até nos hospitais há uma negação da morte, é um tabu. Para fazer um luto menos traumático, é preciso encarar a morte com naturalidade”

Helena Bento

Jornalista

José Fernandes

A escritora norte-americana Joan Didion, no livro que escreveu sobre a morte do marido, intitulado “O Ano do Pensamento Mágico”, descreve como a morte, antes tão omnipresente e familiar, foi removida do espaço público. Ao mesmo tempo, o luto passou a ser encarado como uma espécie de “autocomiseração mórbida”, instalando-se a ideia de que as pessoas que escondem o seu luto quase completamente, guardando a dor para si mesmas, sem manifestações de tristeza, devem ser admiradas e enaltecidas.

Mas estes fenómenos têm grandes implicações nos processos de luto e é necessário “trazer a morte de volta à vida”, diz Lídia Rego, psicóloga na área dos cuidados paliativos no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e membro da cooperativa de solidariedade social LInQue, que presta estes cuidados em casa e promove sessões de apoio ao luto.

“A morte precisa de ser cuidada e amparada, para ser entendida por quem fica. É esta naturalidade que vai permitir viver um processo de luto de forma acompanhada, evitando que as pessoas se isolem. A grande perda, após a morte de alguém próximo e muito significativo, é ficar sozinho a lidar com a dor. Enquanto não estivermos sintonizados com isto, continuará a ser muito difícil lidar com a morte de forma saudável e até construtiva, fazendo novas aprendizagens.”


Para que tudo isto seja possível, é necessário, desde logo, ampliar as respostas que existem nesta área e criar outras, defende Lídia Rego, que foi convidada a participar no quinto episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado ao tema do luto. Há poucos grupos e consultas de apoio ao luto nos hospitais públicos e outras estruturas do SNS. Além disso, “muitas pessoas são referenciadas tardiamente para os cuidados paliativos”. “Chegam aos serviços uma semana ou mesmo um dia antes de morrerem. Nesses casos, o trabalho que podemos fazer é mínimo. Os recursos na área dos cuidados paliativos são escassos, mas podem ser ativados mais cedo, para termos tempo para trabalhar com os doentes e respetivas famílias.” Esse acompanhamento poderá ser determinante para o processo de luto em si, tornando-o mais saudável e menos traumático. “Ter uma morte humanizada é um grande fator protetor.”

Nos últimos dias de vida da mãe, há cerca de sete meses, Maria Cazenave, que tem 36 anos, é de Lisboa e trabalha como gestora de projetos educativos, fez questão de a ter por perto. Quis que ela fosse para casa, em vez de permanecer no hospital, e a família contratou uma equipa de cuidados paliativos para dar assistência no domicílio.


José Fernandes


“Emocionalmente, foi muito complicado. Acedi a lugares de dor que não sabia que existiam. Mas o facto de termos estado ao lado dela até ao fim ajudou a consolidar ainda mais o amor que existe entre mim, o meu irmão e a minha mãe. Naqueles últimos dias, houve demonstrações de amor profundas. Foi de uma humanidade atroz e completamente transformador.”

Em entrevista ao podcast, Maria explica que este acompanhamento e preparação para a morte refletem-se no processo de luto que está agora a viver. “Emocionalmente foi muito complicado. Acedi a lugares de mim, lugares de dor, que não sabia que existiam. Lembro-me de pensar que estava a cuidar da minha mãe não para ela ficar melhor, mas para ajudá-la a partir de uma forma digna e com muito amor. Mas o facto de termos estado ao lado dela até ao fim ajudou a consolidar ainda mais o amor que existe entre mim, o meu irmão e a minha mãe. Naqueles últimos dias, houve demonstrações de amor profundas. Foi de uma humanidade atroz e completamente transformador. Não consigo sequer imaginar outra forma de ter feito isto.”

Neste episódio sobre o luto, foram abordadas ainda outras questões: a inclusão do luto prolongado na lista dos distúrbios mentais da Organização Mundial da Saúde e os pontos positivos e negativos desta decisão; as várias fases do luto conforme foram descritas pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross em 1969 e se o modelo que propôs ainda é aceite e aplicado hoje em dia; e o que cada um de nós, individualmente mas também de forma coletiva, enquanto sociedade, pode fazer para tornar o luto de quem nos é próximo mais saudável e menos traumático. Porque a verdade é que nem sabemos como reagir e o que dizer ou fazer.


Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.



Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate