Manual de Sobrevivência

Illya, 10 anos, perdeu o pai num ataque russo, Oksana perdeu o filho Ostap, de 36 anos: eis a guerra que virou tudo do avesso e para sempre

A incerteza dominava as ruas de Kyiv, o nosso bunker e os nossos pensamentos. Os primeiros dias da invasão russa em larga escala foram particularmente tensos, ninguém sabia o que ia acontecer. Com o meu amigo e colega Rui do Ó tentamos sentir o pulso à capital ucraniana, uma cidade que mudou, drasticamente, de um dia para o outro. Partilho convosco os sons e as conversas desses dias, que vivemos em conjunto com um grupo de jornalistas portugueses. Juntos, saímos da Ucrânia na noite de 1 de março de 2022. O meu nome é Iryna Shev e este é o último episódio do podcast Manual de Sobrevivência

Illya, 10 anos, perdeu o pai num ataque russo, Oksana perdeu o filho Ostap, de 36 anos: eis a guerra que virou tudo do avesso e para sempre

Tiago Pereira Santos

Coordenador de Arte Digital e Vídeo

A 24 de fevereiro de 2022 acordei com o alarme do hotel. Dizia que havia um incêndio no edifício. Agarrei no telemóvel e vi centenas de notificações, entre chamadas e mensagens. Percebi que a invasão em larga escala tinha começado. A primeira coisa que fiz foi mandar mensagem para o grupo de família no WhatsApp a dizer que estava bem. Depois, fui à janela, onde duas pessoas seguiam, apressadas, em direções opostas. Por fim, bati à porta do quarto do Rui do Ó, meu colega e amigo. “Rui, começou,” disse-lhe. “Deixa-me ir buscar o material,” respondeu-me.

Repórter de imagem Rui do Ó filma uma coluna de carros de combate a passar no centro de Kyiv, no dia 24 de fevereiro

O último episódio do podcast é sobre o dia que mudou a Europa para sempre. Sobre como foram os primeiros dias da grande guerra. Conto-vos como era dormir num parque de estacionamento de um hotel no centro de Kyiv, numa altura em que os especialistas militares internacionais davam a luta dos ucranianos como perdida, diziam que Kyiv ia ser “conquistada em três dias.” A incerteza dominava as ruas, dominava o nosso bunker, dominava os nossos pensamentos.

Um grupo de adolescentes, num bunker, em Kyiv

O grupo de jornalistas portugueses que estava na capital ucraniana no início da invasão em larga escala, onde o Rui do Ó e eu nos incluíamos, foi retirado do país com a ajuda da embaixada portuguesa em Kyiv. A primeira tentativa de evacuação passou pela estação de comboios, onde milhares de ucranianos tentavam fugir.

As plataformas estavam a transbordar de gente. Os acessos estavam bloqueados. Os funcionários da estação berravam: “Mulheres e crianças! Apenas mulheres e crianças!” Rapidamente percebemos que não íamos apanhar comboio nenhum. Além de parecer impossível, nenhum de nós se sentia confortável em tirar lugar a quem ali estava.

Principal estação de comboios de Kyiv, onde milhares de ucranianos tentavam sair da capital, nos primeiros dias da invasão em larga escala

A segunda tentativa, bem sucedida, passou por uma carrinha diplomática que nos levou até à fronteira com a Moldávia. Depois de longas horas de viagem, atravessamos a fronteira a pé onde nos esperava um autocarro que nos levou até à Roménia. Já dentro da União Europeia esperava-nos um outro motorista. Na carrinha deste, com o volume muito alto, tocava música dos anos 1980. Parecia que tínhamos entrado num mundo paralelo. Estávamos na União Europeia. Estava tudo bem. As pessoas ouviam música e divertiam-se. Era a vida normal, de novo. Nós é que nos tínhamos esquecido que ela existia.

Neste episódio falo-vos também de Halya, uma senhora na casa dos 70 que sobreviveu à ocupação russa de Chernobil. Uma senhora cheia de garra que nos convidou a almoçar com ela e com o marido, e que se apaixonou pelos encantos do Rui do Ó. Conhecemos Halya e o marido a poucos dias da invasão em larga escala.

Halya, de 71 anos, recebeu os repórteres da SIC em casa, numa aldeia em Chernobil

Conto-vos também a história de Illya, um menino de 10 anos que ficou ferido num ataque russo ao centro de Chernihiv, cidade a nordeste de Kyiv. Um menino que seguia com o pai, no carro, quando um míssil russo caiu no principal teatro da cidade. O veículo foi mandado contra a parede de um edifício pela onda de impacto. O pai do Illya não sobreviveu, mas na altura em que estive com o menino, ele ainda não sabia disso.

Illiya, um menino de 10 anos ficou ferido num ataque das forças russas ao centro da cidade de Chernihiv

Partilho também a história da Mladena, uma mulher de 33 anos que perdeu o marido, Ostap, de 36, na frente de Bakhmut. Ostap voluntariou-se no início da invasão em larga escala e morreu no campo de batalha em agosto de 2023. Mladena ficou sozinha com a filha de 11 anos. Contou-me, em entrevista, que a filha, Solomya, não conseguia aceitar a morte do pai. “Ela aceitou isso com muita dor. A notícia da sua morte. E a primeira coisa que perguntou foi “por que ele? Porque tinha de ser ele?”

"Eu disse-lhe que ninguém deveria ter de morrer. Porque se formos pela lógica do ‘porquê ele e não outro’ isso significaria que outra pessoa iria ficar sem pai, ou sem filho. Mas na verdade, ninguém de nós, ninguém dos nossos familiares deveria ter de morrer. E a culpa disso é da Rússia e do povo russo.”

Ostap com a mulher, Mladena, e a filha, Solomiya, durante umas férias do serviço militar

Este episódio encerra o podcast Manual de Sobrevivência. O projeto contou com a sonoplastia de João Luís Amorim, a coordenação de Joana Beleza e a direção de Ricardo Costa. O meu nome é Iryna Shev, foi uma honra partilhar convosco histórias sobre o dia a dia num país em guerra.

Iryna Shev e Rui do Ó, em reportagem na Ucrânia

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: shevstories@gmail.com

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