Manual de Sobrevivência

“Os russos estão sempre a mandar carne para canhão”: um dia com feridos de guerra em Dnipro, a primeira cidade antes da frente de combate

Em visita a Dnipro conheci soldados acamados num hospital que tinham acabado de chegar da linha da frente. Fiquei impressionada pela boa disposição daqueles homens. Estive também num centro de deslocados internos onde mais de 200 pessoas e 83 animais de estimação estavam à espera do fim da guerra para regressar a casa. O meu nome é Iryna Shev e este é o meu Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra

“Os russos estão sempre a mandar carne para canhão”: um dia com feridos de guerra em Dnipro, a primeira cidade antes da frente de combate

Tiago Pereira Santos

Coordenador de Arte Digital e Vídeo

Estava chateada por não poder fazer reportagem. Tinha vindo de Kyiv de propósito para trabalhar uma semana em Dnipro. A passagem por um dos hospitais era obrigatória. Dnipro é a primeira cidade a receber soldados feridos em combate, que normalmente são encaminhados para alí depois de serem estabilizados nos hospitais de campanha. A linha da frente mais próxima fica a 100km a sul e a frente Leste fica a 200km.

Como acontece muitas vezes aos jornalistas, os meus planos saíram furados e só pude ficar naquele hospital como voluntária. Por isso, arregacei as mangas e ajudei uma outra Iryna a distribuir roupa e comida aos soldados acamados. Fiquei surpreendida pela boa disposição daqueles homens. Afinal, tinham chegado da linha da frente no dia anterior. Alguns mal se mexiam mas iam mandando piadas para o ar.

A chefe de voluntários daquele hospital, Larissa, uma mulher na casa dos 60, contou-me que aquele centro abriu em 2014, quando começou a guerra no Leste. Explicou que agora a situação era mais controlável porque toda a gente, isto é, os voluntários, sabem exatamente o que têm que fazer. É uma máquina oleada que não só trata de alimentar e vestir os soldados feridos, como também de os animar e entreter.

“Para mim eles são todos como meus filhos. Pergunto-lhes ‘Filho, de onde és? Prova este bolinho, olha! É igual ao que a tua mãe faz lá em casa.’ Eles comem e dizem que sim. Eles sofrem ferimentos muito, muito graves. E a nossa missão, a dos voluntários, é descobrir, com calma, como podemos ajudar. Acha que só os vestimos e alimentamos? Não, também resolvemos alguns dos problemas deles. E casamo-los! Sim, sim! Já tivemos vários casamentos aqui no hospital!”

Dnipro é também a primeira cidade a receber civis que fogem de zonas mais perigosas do país. Em visita à cidade, conheci um dos muitos centros de deslocados internos que há por lá. Aquele, chefiado por Anastácia e Talina, duas mulheres com 20 anos de diferença que se conheceram no início da invasão, quando centenas de refugiados começaram a chegar ao bairro onde elas moram.

“Assistimos ao horror de vermos carros destruídos a chegar. As pessoas de chinelo no pé e de camisas de noite ou de pijamas com aquele frio. Feridos, crianças em sangue. Foi terrível. E, naquele momento, estávamos em choque. Não sabíamos o que fazer, as pessoas que chegaram também, não. Ligávamos para as linhas de emergência, ninguém atendia. O presidente da Câmara também não. Percebemos que o sistema não estava preparado. Tínhamos que tomar decisões rápidas.”

Anastácia e Talina conheceram-se no início da invasão em larga escala. Na altura, começaram a recuperar um edifício abandonado para servir de refúgio para aqueles que fugiam de zonas mais quentes da Ucrânia

Decidiram recuperar um edifício abandonado que encontraram ali na zona. Um edifício velho, com tinta a escamar, mas muito bonito, com uma arquitetura do início do século XX e com um problema: o espaço estava em vias de privatização desde 2020 e, por isso, nem todos viram de bom grado que o espaço tivesse sido ocupado por refugiados. Talina e Anastácia contaram-me uma história que parecia tirada de um filme de Hollywood, mas assim daqueles rascas. Um político terá usado contactos na polícia para expulsar refugiados de um edifício onde queria fazer escritórios.

De qualquer das formas, as senhoras lutam para assegurar aquele espaço para as mais de 200 pessoas e 83 animais de estimação que vivem ali.

“Agora sorrimos, porque já passou algum tempo. Às vezes, sabe, vêm cá jornalistas da televisão, e dizem: ‘Vocês têm muito bom ar. Como é que conseguem?’ Respondo sempre assim: olhe, a rosa, é bonita, não é? É, mas tem picos. Nós também temos picos, mas os nossos picos estão dentro de nós. Dentro de nós está a escuridão, um abismo feito de picos. Somos um vaso partido colado pelo abismo.” As palavras desta senhora, muito bonita, que encontrei à porta do edifício, mesmo antes de ir embora, ficaram a fazer eco na minha cabeça. Realmente, mesmo que pareça que está tudo bem, como é que as pessoas que perderam tudo e viram a guerra a rebentar à sua frente podem ficam completamente bem? Pelos vistos, ficam que nem as rosas, mas com picos virados para dentro.

Manual de Sobrevivência tem sonoplastia de João Luis Amorim, arte gráfica de Tiago Pereira Santos. Dobragens de Ana Alvarinho, André Pacheco, Catarina Coutinho, Catarina Neves, Cristiana Reis, Cristina Neves, Diogo Martins, Gonçalo Giestas, Hugo Maduro, Mariana Xavier, Rita Neves, Silvia Lima Rato e Vitor Lopes. Coordenação de Joana Beleza. Direção de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou falar-vos sobre o dia em que começou a grande guerra.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: shevstories@gmail.com

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