Consegue imaginar o desconforto dos abrigos onde dezenas de famílias passam as longas noites de ataques aéreos? Iryna Shev leva-nos lá
O abrigo em que passo as noites mais agressivas de ataques aéreos contra a capital ucraniana é grande, frio, labiríntico e cheira a humidade. Recebe, por norma, cerca de 200 pessoas. Uns vêm mais bem preparados do que outros. Há famílias que trazem colchões de yoga, almofadas, mantas, bancos de pescador, para que as horas passem da forma mais confortável possível. As vozes de tanta gente junta ao mesmo tempo, à espera que o perigo desapareça, às tantas, parecem uma reza conjunta. Oiça aqui o 2º episódio de Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo de Iryna Shev sobre o dia a dia num país em guerra
As zonas da cidade com mais marcas da queda de destroços, de drones ou de mísseis, são as que, por norma, têm uma maior afluência aos abrigos. É o caso da zona onde moro onde, assim que soa a sirene, vejo pela janela pessoas a correr para o abrigo, que fica em frente ao meu prédio.
Os alertas de perigo de ataque podem durar meia hora, duas ou seis horas. São accionados, em Kyiv, sobretudo durante o período da noite. E o “guardião” do nosso abrigo, que na verdade é um parque de estacionamento subterrâneo, está sempre pronto para deixar as pessoas entrar. Viktor, nome fictício, contou-me que quando está de serviço não se despe para dormir, porque “nunca se sabe.” Um homem a caminho dos 60 que se emocionou a falar comigo quando lhe perguntei “como está?”
O abrigo é frequentado por cerca de 200 pessoas
O abrigo é frequentado por cerca de 200 pessoas
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No ano passado, as forças russas atacaram de forma massiva as infraestruturas energéticas da Ucrânia e isso deixou milhares de ucranianos sem eletricidade durante longos períodos de tempo, em várias zonas do país. A zona onde mora a minha avó não ficou de fora. A minha querida avó Maria passou o inverno do ano passado a jogar cartas com as amigas idosas, na casa de uma delas, com uma lâmpada carregada com ‘power bank’ em cima da mesa. Uma forma de se distraírem e de se apoiarem umas às outras.
A avó Maria a preparar um prato tradicional ucraniano: vareniky.
Tenho reparado, pelas conversas que tenho tido com a população de várias zonas do país, que o maior choque de ter começado uma guerra em larga escala, em fevereiro de 2022, foi para aqueles ucranianos, por norma mais velhos, do leste do país, que acreditavam, genuinamente, que a Ucrânia e a Rússia eram dois povos irmãos. Hoje, sentem-se enganados. Foi isso que me contou, por exemplo, a Vera, uma senhora idosa da região de Sumy: “Mas como pode a Rússia ser um irmão se matou tanta gente? E qual a razão? A Ucrânia não lhes fez nada.”
Vera mora praticamente sozinha num prédio em que um terço está por reconstruir. Tem o filho e o neto a combater.
Este é o segundo episódio do Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra. Tem sonoplastia de João Luis Amorim e arte gráfica de Tiago Pereira Santos. As dobragens são de Ana Alvarinho, Carolina Reis, Catarina Coutinho, Catarina Neves, Graça Costa Pereira e Mariana Xavier. A coordenação de Joana beleza e a direção de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou contar-vos a história do massagista de Mariupol.