Humor à Primeira Vista

“É sempre difícil fazer comédia com o horror absoluto, mas ser humorista implica dar dois passos atrás. O humor alivia a dor, corrói o medo”

Ricardo Araújo Pereira regressa ao Humor À Primeira Vista no momento em que se estreia no mundo dos podcasts com "Coisa Que Não Edifica Nem Destrói". Em conversa com Gustavo Carvalho, explica por que razão o sentimentalismo é o maior inimigo do humor, revela como foi conhecer Woody Allen e afirma que só é humorista quem consegue "encontrar o ridículo em tudo", incluindo "no partido ou quadrante ideológico" no qual se situa. Oiça aqui a entrevista

João Pedro Morais

Há uma frase que já referiste em diversas entrevistas: "Apelar às emoções é anti-humorístico. O humorista o que faz é manter o coração no congelador." Achas que esta é ironicamente uma visão demasiado romântica do papel do humorista? Será que consegue manter mesmo o coração no congelador, ser quase um robô?
Não é ser um robô. A questão é a seguinte: a lamechice e o humor são inimigos. O que [Henri] Bergson diz no livro "O Riso", se bem me lembro, é: anestesiar o coração. O André Breton diz no prefácio da “Antologia do Humor Negro” que o humor é inimigo do sentimentalismo.


Mas humoristas ou obras artísticas que misturem uma certa lamechice com o humor não resultam? Ou sentimentos. Por exemplo, "A Vida é Bela" mistura a emoção.
Sim, sabes que há um longo debate sobre "A Vida é Bela". Longuíssimo e intrincado. [...] Uma vez vi um documentário em que humoristas judeus falam sobre humor e é atravessado por a experiência de uma sobrevivente do Holocausto. Quando confrontada com humor sobre o Holocausto tem muita dificuldade em relacionar-se com aquilo. Por exemplo, a certa altura há um bit da Sarah Silverman, que é: "A minha sobrinha no outro dia telefonou-me, disse que estava a estudar o Holocausto, que o Hitler era um homem horrível, 60 milhões de judeus mortos. E eu disse: 'Calma, não são 60 milhões, são 6 milhões. 60 milhões seria imperdoável.'" E a senhora, que está a assistir na televisão diz: "E 6 milhões não é imperdoável?" Essa é a piada. E aí notas a diferença entre uma pessoa que tem o coração no congelador, que é a Sarah Silverman, e uma senhora que é incapaz de o fazer, que é a pessoa que está a assistir. E nesse documentário aparece o Presidente de uma associação judaica americana a dizer que "A Vida é Bela" é um filme magnífico e o Mel Brooks a dizer que é o pior filme que ele já viu na vida. E é possível simpatizar com os argumentos do Mel Brooks. É sempre difícil fazer comédia com o absoluto, e nesse caso com o absoluto horror. E a ideia de ser possível alguém estar num campo de concentração, conseguir esconder do filho o horror, salvá-lo dessa forma. Tu estás a ver aquilo e sabes que os campos de concentração são de tal forma horríveis que insinuar que aquilo é possível tem qualquer coisa de problemático.


Não é uma questão de não exibir emoções. Exibindo-as, importa ter sempre a vertente humorística por trás.
Exato, nada contra. A disposição humorística implica estares sempre dois passos atrás. E mesmo quando estás a sofrer. Eu, por exemplo, tinha 4 cães, agora tenho 0,75 cães. Só sobra o Demónio e ele só tem 3 patas. Ainda por cima os cães vivem o máximo que eu consigo que eles vivam. Porque eu os trato bem, porque o veterinário é ótimo, mas às vezes há um momento em que vejo nos olhos do veterinário que vamos ter de tomar uma decisão dura. E eu já tive muitos cães ao longo da vida, já tive de tomar essa decisão dura várias vezes. Invariavelmente acabo a tarde abraçado a um cão morto. E estou a chorar para cima de um cão morto. E isso é um sofrimento que as pessoas que não têm cães não compreendem, mas estou a chorar para cima de um cão morto. Claro que aquela altura é dolorosa, e continua a ser doloroso. Mas eu sou capaz de ver que há qualquer coisa de bizarro em estar a chorar agarrado a um cão morto. Quando as minhas lágrimas se começam a infiltrar no pêlo eu digo: "Há aqui qualquer coisa que é bizarra." Eu acho que o humor aponta para ser uma espécie de alívio da dor, de corrosão do medo. A questão é saber até que ponto é que consegue fazê-lo, quão eficaz é que é. Eu acho que é um bocadinho eficaz, não diria que é muito eficaz. A razão para recorrer a ele é porque não há mais nada, eu não conheço mais nada.


João Pedro Morais

Estava a ler um pequeno texto chamado "O Paradoxo da Comédia" que referia que se o humor consegue dar esse alívio, as pessoas voltam porque a longo prazo não funcionou.
Isso prova que não é um remédio definitivo.


João Pedro Morais

Dizes que o humorista ativista falha duas vezes, como humorista e como ativista. O ativismo está na intenção do comediante ou no público que interpreta o humor?
No programa temos um ponto de vista. Aliás, eu rejeito a ideia de que o humorista deve ser imparcial. Não, não deve. Não tem nenhuma obrigação de o ser. Uma coisa muito diferente é dizer que deve fazer propaganda, que deve tentar persuadir as pessoas de como devem votar. As pessoas não vão a um espetáculo de comédia para receber lições de moral. Eu entro num espetáculo de comédia e dizem-me: "Sabes que o racismo é mau" Sim, eu já sabia, tenho essa ideia, sim. "E as mulheres na cozinha, não pode ser assim". Pois não, realmente não. Isso não é comédia." Às vezes as pessoas dizem que a perspetiva das pessoas mudou e agora é mais difícil fazer comédia, tens de te esforçar mais porque as pessoas já não aceitam qualquer coisa. A minha experiência é inversa. Sobretudo se tiveres determinado tipo de disposição é muito mais fácil. As pessoas dizem que as fórmulas de antigamente já não funcionam. Funcionam e de que maneira. Tu chegas ao palco e fazes a seguinte fórmula, a ironia mais estafada: "Não, mulheres na cozinha, claro. Então elas até são do tamanho do fogão, mesmo para chegarem ali aos bicos do fogão." É sempre, sempre a ironia mais estafada. Aprendam outra figura de estilo, mais uma, vá lá, só para ir alternando. Sinceramente parece-me facílimo, facílimo, não vejo que agora seja mais difícil. Não é. Por acaso agora é bastante mais fácil para toda a gente. Por exemplo, para mim que não tenho interesse em fazer isso também é mais fácil porque há tantos mais tabus que isso é excelente para quem pretende fazer comédia.

Tiago Pereira Santos

Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: gcarvalho@impresa.pt

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