Nuno Artur Silva: “Interessa-me perceber hoje qual o espaço para uma comédia crítica não só do poder político, mas dos outros poderes todos”
A “stand-up comedy” chegou à vida de Nuno Artur Silva muito depois de começar a escrever para Herman José e de fundar as Produções Fictícias. Depois de ter passado pela administração da RTP e de ser Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média até março deste ano, regressa aos palcos com o espectáculo “Onde é que eu ia?”. No podcast Humor à Primeira Vista, Nuno Artur Silva analisa o poder do humor e de programas como o de Ricardo Araújo Pereira, conta como conheceu Herman José e revela a experiência de “ficção científica” que foi pertencer a um governo, ainda por cima em plena pandemia.
Quando estavas em cargos mais “sérios” - no governo e na RTP - encontravas oportunidade para te rires perante situações “dramáticas” Sim, não tanto pensar “Eu vou usar isto”, mas eu sempre me fiz acompanhar do meu bloco de notas. Talvez seja uma característica das pessoas que trabalham na área criativa. Tu nunca estás desligado completamente. Estás sempre a pensar e a olhar, mesmo quando não estás consciente disso. O cérebro está a fazer associações e há coisas que mais tarde ou mais cedo vais de certeza recuperar. Isso acontece sempre. A RTP ou o governo são cargos muito absorventes, estamos ali com toda a seriedade possível mas é impossível também desligar o chip do humor. O Dinis Machado - escritor de quem gostava particularmente não só como escritor, mas também como pessoa - tinha um texto, pequenino, num livro chamado “Reduto Quase Final”, que se chamava “Qual o lado mais cómico disto?”, em que ele falava das pequenas tragédias, mas também das grandes tragédias. A gestão desse tempo da piada, olhar para o mundo e descobrir essa redenção, sempre. No meio da tristeza, da dor, da tragédia, encontrar um ângulo que nos possa fazer rir e de alguma maneira trazer ali uma espécie de pequena mínima dose de efémera felicidade.
Qual é que é o poder do humorista? O poder do humorista é o poder do megafone do humorista. Isto é, quanto maior é o megafone do humorista maior é o seu poder. E maior a implicação política do seu humor.
Estás a falar do Ricardo Araújo Pereira? Não estou a falar só do Ricardo, estava a pensar até em termos mundiais. Mas sim, neste caso, em Portugal neste momento é o Ricardo.
Que poder é que achas que o programa do Ricardo Araújo Pereira tem? O poder é relativo. Isto é um exercício interessante, independente de ser agora o Ricardo e de ter sido noutros tempos o Contra Informação, ou de nos Estados Unidos o John Oliver, Jon Stewart ou os outros. Num mundo em que muitas vezes o trabalho de comunicação política vive muito de “soundbites”, de frases que não podem deixar de ser populistas, muitas vezes, para chegarem a mais pessoas. É reduzir realidades complexas a expressões de cinco segundos... Isso é o trabalho do humorista, curiosamente. É um desafio perigoso para o humorista porque há o risco de, involuntariamente, os humoristas se tornarem populistas. E isso é uma coisa que estou a falar em abstrato, é um desafio novo. Porque se tu começas a classificar determinado político aquilo cola-se à pele e é difícil depois existir sem aquilo colado. O humorista não tem poder nenhum, o humorista não derruba um governo, mas quando tu pões o bigode ridículo no político é difícil de o tirar. As pessoas passam a ver o político e lembram-se do bigode. É no fundo pegar numa realidade complexa e reduzi-la a uma caricatura. O Contra Informação fazia isto.
No livro "13 anos de insucessos", sobre as Produções Fictícias, li que chegou uma altura em que os políticos queriam ter o seu boneco no Contra Informação. Sim, porque era uma forma de existirem, de validação.
Podemos pensar se os políticos querem aparecer ou não no programa do Ricardo Araújo Pereira. Sim, na altura queriam ir ao programa do Herman, e hoje querem ir ao programa do Ricardo Araújo Pereira.
O André Ventura é isso que quer. Sim, chegámos ao extremo de olhar para os programas de humor como se fossem programas informativos com a obrigação de serem equilibrados. Que é ridículo. Não são. Os humoristas têm um trabalho que é exclusivamente criativo. É um trabalho de liberdade total. Não deve ser condicionado. No entanto, dizer que o trabalho não tem implicações políticas não faz sentido.
Parece-te redutor dizer isso. Claro que tem implicações políticas. Qualquer coisa que põe no ar perante uma comunidade tem implicações políticas. Porque é uma versão da realidade. Independentemente de ser humor, é sempre uma visão sobre a realidade. Não defendo de maneira nenhuma qualquer constrangimento, nunca o defendi. Não pode haver.
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