O futuro próximo do Ocidente dificilmente será liberal, mas é vital, e ainda vamos a tempo de o assegurar, que não seja iliberal. Não estou, no que à primeira parte da afirmação diz respeito, a falar do constitucionalismo liberal, pilar essencial das democracias ocidentais, mas estou a falar do liberalismo como ideologia. Digo ideologia para me referir, internamente aos Estados, às propostas políticas onde primordialmente, na clássica dicotomia Estado/Privados, os segundos prevalecem sobre o primeiro; onde os mercados e as sociedades restringem (ou recuperam, consoante os casos) ao Estado espaço e poder de interferência na vida quotidiana dos povos. Digo ideologia, também, para me referir às Relações Internacionais, sublinhando que a ideia de uma comunidade internacional, norteada por valores universais, soçobrou à lei da força, derrogando, sem fim à vista, a força da lei. Já no que diz respeito à segunda parte da afirmação, quanto ao risco de iliberalismo, estou a falar do constitucionalismo liberal, sim, e das ameaças que sobre ele pairam. Mas já lá vou.
Esta primeira afirmação, a de que o futuro próximo do Ocidente dificilmente será liberal, não é um desejo, nem uma profecia. Não é um desejo, porque não creio que isso seja bom. Na verdade, não são as virtudes do liberalismo que estão em causa, mas antes a sua viabilidade num mundo novamente marcial: quer do ponto de vista da capacidade de respostas eficazes aos problemas presentes e do futuro próximo, quer do ponto de vista, mais fatal para o liberalismo, de adesão das sociedades a essas ideias. E não é uma profecia, porque é já demasiado óbvia para o ser. Tão óbvia, que se as respostas já dadas e ainda por dar à Guerra da Ucrânia não o confirmassem, as respostas à crise pandémica da Covid19 já o tinham pré-anunciado.
Explico melhor: o anúncio da morte dos 4 Cavaleiros do Apocalipse (a Peste, a Fome, a Guerra e a Morte) talvez tenha sido exagerado. Yuval Noah Harari no seu díptico ensaístico sobre o Homem – Sapien e Homo Deus – desenvolve a ideia de que o Homem praticamente venceu os temerosos e imemoriais Cavaleiros. No seu segundo livro diz que “na alvorada do terceiro milénio, a humanidade desperta para uma constatação notável, (…) nas últimas décadas conseguimos dominar a fome, as epidemias e a guerra.” Menos mortes em conflitos armados do que por suícidio, menos mortes por má nutrição e excessos alimentares do que por fome, são algumas das evidências apresentadas. Mas não só: num mundo e numa economia em que os bens intangíveis passaram a ter mais valor económico, a guerra passou a ser mais cara do que a paz. Mais: os benefícios da paz passaram a ser muito superiores aos da guerra. Porém, Yuval sinaliza que “é certo que estes problemas não foram completamente resolvidos”, mas que “sabemos bem o que temos de fazer para evitar a fome, as epidemias e a guerra – e, regra geral, somos bem-sucedidos”. Parece que é tempo, agora, de recordar a sabedoria popular: não há regra sem excepção.
Leio por aí que o Ocidente deveria ter antecipado isto, e deveria ter tomado medidas atempadas. Concordo que os sinais estavam todos à vista. Leio por aí que, nessa antecipação devida, nunca a Europa se deveria ter deixado entregar a uma dependência energética da Rússia. Que foi uma loucura deixar que as democracias europeias ficassem nas mãos de uma autocracia – já lhe podemos, entretanto, chamar tirania? Mas, e a China? Entre 2009 e 2019, a União Europeia substituiu os Estados Unidos pela China como principal parceiro para as suas importações. Se a União Europeia está energeticamente muito dependente da Rússia, que dizer, numa escala muito mais ampla, da sua dependência face à China? É a China um parceiro fiável, alinhado com a nossa mundividência, e defensor dos nossos valores de liberdade, democracia e respeito pelos direitos humanos? Muitos, a esta pergunta, responderão que não tem que ser: no comércio internacional isso não interessa. A esses contraponho com dúvida: e se a China tomar Taiwan? Já nem tanto por causa dos valores ou da mundividência, que já vi que não são, para esses, relevantes, derrogando boa parte do liberalismo em matéria de Relações Internacionais, mas por causa do controlo do mar da China e do impacto económico que isso tem no mundo.
O mundo aberto, o comércio livre, a interdependência dos Estados, e a Globalização permitiram os níveis de prosperidade mais extraordinários da história da Humanidade, mas tudo isso volta a estar em causa na nova ordem mundial. São já muito insistentes os alertas para a necessidade de uma geoeconomia e um regresso à geopolítica. Quererá isto dizer comércio livre apenas numa parte do mundo? Mas se isso for a tendência, isso quererá dizer também uma amputação à globalização como a temos experimentado. E quererá dizer também uma tensão militar entre as partes apartadas.
Outros sinais, mais internos aos Estados, foram os que os poderes políticos e as sociedades deram desde o início da crise pandémica que precedeu esta guerra. Se é verdade que a pandemia pôde ser vencida graças às virtudes do mundo aberto, de que a Ciência foi o porta-estandarte, também é verdade que a primeira resposta foi o fecho das famílias nas suas casas, e os países nas suas fronteiras. Daí, passaram a ser muito insistentes as narrativas nacionalistas de fecho de fronteiras ao “outro” e de proteccionismo económico. Mas não só. Para lá desta narrativa, mais sonora à direita, mas não só, há ainda outra, mais sonora à esquerda, mas também não só, que enaltece a aparente prosperidade, conforto e segurança do modelo chinês. Em ambos os casos, um ponto em comum: o profundo desprezo pela liberdade e pela democracia.
Dizia que o futuro próximo do Ocidente dificilmente será liberal. Por duas razões: porque agora o liberalismo apenas poderá dar uma resposta limitada pelas avaliações que se façam no quadro da nova geoeconomia e geopolítica, e porque estas avaliações pesarão mais do que a racionalidade dos ganhos económicos das transacções e limitarão a livre circulação, frustrando dois dos seus essenciais pilares; mas também porque as populações esperam dos Estados segurança, protecção, conforto e bem-estar, numa expectativa e numa exigência nunca experimentada desde o fim da Guerra Fria. Passado o frémito solidário com o povo Ucraniano – se o conflito não escalar, o que não parece provável -, perder o que alcançaram será insuportável para as sociedades do Ocidente. Para isso, estarão, talvez, disponíveis a penhorar boa parte da liberdade (e quiçá, também, da democracia) em favor dessa desesperada defesa do bem-estar experimentado. E voltar-se-ão, inexoravelmente, para os Estados.
Não será despropositado recordar, a este propósito, os resultados de um inquérito sobre os valores, feito pelo WEF em 2018 à juventude europeia: aí se vê como a tolerância, a paz ou os direitos humanos são mais valorizados que a liberdade e a democracia. Não deixa de ser curioso que as causas, as condições essenciais em torno das quais estas sociedades de conforto, paz e tolerância foram fundadas, precisamente a democracia e a liberdade, surjam depreciadas face às consequências. E se isto não bastar como argumento, a memória dos tempos de confinamento pandémico, as cedências, os juízos morais e as hetero-imposições ajudam a perceber o quanto a sociedade está disposta a alienar em nome da mitigação de riscos para a vida dos indivíduos; numa busca, às vezes demencialmente exacerbada, do risco zero.
Entre as narrativas nacionalistas e as narrativas globalistas, se a razão pende para estas, o mundo poderá bem vir a pender para aquelas. Cabe aos liberais, aos conservadores, aos democratas-cristãos, aos sociais-democratas, aos socialistas democráticos et tutti quanti (todos os defensores da ordem liberal: a do rule of law) travarem o inusitado combate das suas vidas: juntos, assegurarem a preservação da ordem democrática e liberal do Ocidente, contra todas as formas de iliberalismo. E isso, quando se ouve o rufar dos tambores da guerra, não se faz com tibiezas, com distracções, com divisionismos estéreis e exacerbados, nem com pacifismos complacentes com os opressores.
Na nova geoeconomia e geopolítica, será necessário encontrar uma via média entre o liberalismo globalista que conhecemos e os nacionalismos proteccionistas que se adivinham. De faca nos dentes.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia