João Garcia

Um vírus a infetar o jornalismo

João Garcia, jornalista, antigo membro da direcção do Expresso e ex-diretor da Visão, reflete aqui sobre o jornalismo que está a ser feito durante esta crise

Porque estava o foto-jornalista Robert Capa entre os soldados aliados que desembarcaram no Dia D?

Urbano Carrasco, do “Diário Popular”, e Carlos Tudela, Vasco Hogan e Alexandre Gonçalves, da RTP, em setembro de 1957, meteram-se num barco, que alugaram pelo preço de compra, e alcançaram a então recém aparecida ilha dos Capelinhos, formada pela erupção do vulcão do Faial.

Durante a guerra do Vietname, morreram ou desapareceram 63 jornalistas. De 1992 para cá, já foram mortos 190 no Iraque e na guerra da Síria foram 110.

As imagens recolhidas por um jornalista, Max Stahl, no cemitério de Santa Cruz, em Díli, em novembro de 1991, recolocaram o caso de Timor nas agendas internacionais e foram os relatos de um grupo de jornalistas portugueses que permaneceram no território, após o eclodir da violência incentivada pela Indonésia, que alimentaram a onda de solidariedade vivida em Portugal.

Adelino Gomes, o cameraman e o sonoplasta, Fernando Gaspar e Helena Vaz da Silva estiveram no Ralis, no 11 de março, para nos contarem como a guerra civil esteve perto.

Vários jornalistas portugueses andaram por Angola, durante a guerra civil, ouviram o assobiar das balas que passavam perto e estiveram em situações que pareciam ir terminar em fuzilamento. E muitos foram os enviados nacionais a várias guerras no estrangeiro, nomeadamente aos Balcãs.

Que foram eles fazer a todos estes locais? Eram aventureiros ou precisavam de viver, sentir e contar o que lá se passava?

Que foi a Sky News fazer agora ao hospital de Bergamo? (https://news.sky.com/story/coronavirus-they-call-it-the-apocalypse-inside-italys-hardest-hit-hospital-11960597) ?

É nas crises que o jornalismo de qualidade faz mais falta. É nesses momentos que os jornalistas são mais necessários. Têm de testemunhar para melhor contarem. O famoso fotógrafo Cartier-Bresson dizia que a melhor objetiva para fotografar era a 50 milímetros, pois permite retratar de perto e reproduzir melhor o que os olhos veem; e um professor de jornalismo norte-americano, cujo nome não recordo, contava numa das suas lições que percebera o mau estado em que se encontrava uma redação ao ver os jornalistas correrem para os telefones – e não para a rua – quando chegou a informação de que deflagrara um incêndio próximo.

Não é para a rua que está a correr o jornalismo em Portugal. Passado o primeiro dia, em que um jornal foi verificar a eficácia do cerco, não terá voltado a Ovar um jornalista dos principais órgãos – confirmou-me Salvador Malheiro, o presidente da Câmara que conhecemos pixelizado. Mas pior: não se ouvem protestos por os repórteres não serem autorizados a passar o cerco e (autorizados e em segurança) poderem contar o que lá se passa. No Golfo, ao menos, havia os “jornalistas embedded”.

Obviamente que ninguém pode ser obrigado a ir a estes locais, que só voluntários devem ir e devidamente protegidos, mas o estranho é que pareça não haver quem lá queira ir. Ninguém entrou nos hospitais, como fez a Sky News em Bergamo, nem ninguém protesta por não se poder ir ver e relatar o que lá acontece. Vemos o interior de um hospital italiano, mas não o que se passa no São João ou em Santa Maria. O bloqueio não é só das autoridades. E se for, falta a denúncia pública perante o boicote. Perdeu-se em irreverência o que se ganhou em contemporização.

Curiosamente, muitos jornalistas reclamam pelo teletrabalho e até há publicações que mostram a sua modernidade anunciando, com orgulho, que foram feitas de casa. Até à chegada da Covid-19, as redações em espaço aberto eram a cereja no topo do bolo, porque se entendia a importância do trabalho colegial.

Percebe-se que se reduzam os contactos, percebe-se que as redações se desdobrem em turnos, é bom aproveitar as possibilidades que a tecnologia oferece, mas nada de ilusões: o jornalismo faz-se, estando. Estando nos locais, indo às redações planear, debater ideias, discutir o andamento dos trabalhos, discutir com os outros jornalistas o que se conseguiu e o que ainda se pode fazer, como organizar o texto. Para evitar excessos ou défices de informação – e erros. O bom jornalismo faz-se em equipa e é de bom jornalismo que precisamos.

Mas se isto já falta em tempos saudáveis, como esperar que se faça agora? Se este vírus levar a que haja cada vez mais telejornalismo, haverá cada vez menos jornalismo. Se o teletrabalho é possível em dias de tempestade, então em bonança será a regra.

“Que acontecerá quando toda a gente estiver a trabalhar de casa e a comunicar à distância? (…) Em tempos normais, governos, administrações e autoridades da Educação nunca aceitariam fazer tais experiências. Mas estes não são tempos normais”, escreveu Yuval Noah Harari no Financial Times.

O jornalismo não se pode demitir e não pode deixar que o demitam. Nem só de médicos e enfermeiros, e de caixas de supermercados ou motoristas de autocarros, precisamos neste momento.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: garciajadag@gmail.com

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