Com vida curta e ultra-cara, a trufa branca está em democratização

Dos luxuosos Varanda do Ritz e Eleven ao informal Come Prima, a temporada do ‘diamante da cozinha’ chega menos inacessível, escreve Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’
Dos luxuosos Varanda do Ritz e Eleven ao informal Come Prima, a temporada do ‘diamante da cozinha’ chega menos inacessível, escreve Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’
Jornalista
Poucas iguarias gastronómicas têm uma mística tão grande como a trufa branca. Seja pelo aroma intrigante, a origem misteriosa ou o preço estratosférico. Sobre este último aspeto fiquei esclarecida há uns anos, quando inadvertidamente deixo que me guarneçam uma pasta com lascas de algo amarelado (que assumi como parmesão), que no final se revela mais caro do que o almoço completo de duas pessoas.
A raridade e a curta longevidade determinam o preço astronómico deste fungo subterrâneo, que faz de novembro o mês mais aguardado por gastrónomos de paladar apurado e carteira à medida. Esta temporada, no entanto, há mais possibilidades de apreciar a trufa branca em pratos que não chegam aos habituais três dígitos. Já lá irei. A meio caminho entre um tubérculo, um fungo e um cogumelo, desenvolve-se nas raízes de determinadas árvores e arbustos, como carvalhos, azinheiras, aveleiras e estevas. Quando denominada ‘trufa branca de Alba’, tem uma garantia de extra qualidade, por Piedmont, em Itália, ser a região onde há mais e melhores trufas brancas. No sudeste de França, Eslovénia e Croácia, também dá o ar da sua graça. Os chefs entendidos na matéria garantem, porém, que é impossível distinguir os países de origem pelo aspeto, aroma ou paladar das trufas.
Não há uma conjugação de variáveis que garanta o desenvolvimento de trufas brancas, que são um acaso da natureza. Em localizações com condições idênticas, as tuber magnatum podem aparecer ou não, sendo maior a probabilidade da sua inexistência. Outro mistério é o tempo que demoram a formar-se, apontando-se que sejam anos. É este enigma que alimenta o desejo pelo ‘diamante da cozinha’, cujo preço não é tabelado. Há dois anos, durante a pandemia, chegou aos €7.000 por quilo. No início desta época, em outubro, situava-se nos €4 mil, mas já está mais alto nas encomendas para as próximas semanas, revela Pascal Meynard, chef executivo do Varanda no Ritz Four Seasons, que dedica o mês de novembro à trufa branca.
Em detrimento de um menu de degustação completo, e à semelhança dos restaurantes em Lisboa que já apresentaram a temporada da trufa branca (de Alba, em todos), o Varanda opta por uma carta que permite escolher pratos individualmente. Há cinco pratos principais e uma sobremesa (entre €165 e €29, cada), entre tagliatelle fresco com mascarpone e parmesão e peixe-galo com alcachofra e huacatay, por exemplo. Todos os pratos são finalizados com lascas de trufa branca, que perde as suas características se for cozinhada ou aquecida. Para os mais fanáticos e com disponível financeira para isso, estão disponíveis doses extra de trufa branca (€90, 5gr; €180, 10gr). A exorbitância de preços tem a ver também com o curto período de tempo em que podem ser comidas (10 dias depois de desenterradas) e em que estão disponíveis.
É apenas entre outubro e novembro (ou até dezembro, dependendo das condições climatéricas), que acontece a caça à trufa branca, que é literalmente uma caçada. Nesta altura do ano, em Alba, no norte de Itália, os trufalao (caçadores de trufas, em italiano) soltam na floresta os cães farejadores lagotto romagnolo, raça local treinada para descobrir as trufas brancas que se encontram a 20/40 centímetros da superfície. Esta, aliás, é a única raça de cães capaz de as detetar sem as danificar (os porcos foram excluídos por esta razão). Tentam a sorte junto de determinadas árvores, em solos alcalinos e húmidos, onde a micorriza (associação simbiótica entre raízes e fungos dessas árvores) dá origem às trufas brancas. Depois de encontradas, os buracos são tapados, para que os caçadores seguintes não sinalizem as árvores, apesar de não haver garantias de que nos anos seguintes as trufas voltem a desenvolver-se no mesmo lugar.
Garantida este mês é a presença na cozinha do Eleven, que, a par com o Ritz, é um dos pioneiros em Lisboa, com menus de trufa branca. Este ano, o Eleven não é exceção e é o mais democrático, apresentando-se com três propostas com custos distintos. Com o preço mais baixo, o Eleven tem disponível, até 11 de novembro, o menu executivo ao almoço, com três pratos (€45) ou dois (€40), em que a trufa branca está presente apenas no prato principal (pescada, gnocchi de batata e trufa; ou risotto, leitão da Bairrada e trufa). À carta há quatro pratos à escolha (entre €59 e €69, cada) e uma sobremesa (€33), todos com trufa branca e algumas opções comuns ao menu de degustação (€268), que se situa no topo da pirâmide, com quatro pratos e uma sobremesa incluídos. O JNcQuoi também adere à temporada da trufa branca nos seus restaurantes, de 22 a 25 de novembro, com menus que ainda não estão disponíveis.
Se as alternativas low cost fizerem escola, e se os avanços científicos se massificarem, a trufa branca pode passar a ser cada vez menos inacessível. Já apareceram as primeiras tuber magnatum fora do habitat natural, em 2019, junto às raízes de árvores com entre três e oito anos, que tinham sido plantadas no sudeste de França com esse objetivo. É a primeira experiência de cultivo e tem por trás uma equipa de cientistas da empresa francesa We Truf, que se dedica a reproduzir em laboratório as micorrizas, que são colocadas nas raízes das árvores preferidas pelas trufas brancas, controlando os níveis de humidade ideais ao seu desenvolvimento. Esta é também uma forma de garantir a sobrevivência das trufas brancas, que está posta em causa com as alterações climáticas, a subida de temperaturas e a seca extrema.
Em Portugal há quem tenha uma abordagem própria ao tema das trufas. Tanka Sapkota, chef e proprietário do restaurante italiano Come Prima, dedica-se desde 2022 a estudar as possibilidades de encontrar trufas em território nacional (não propriamente a improvável variedade branca), em parceria com os ministérios da Agricultura e Ambiente e algumas universidades. Já fez uma primeira ‘caçada’, em que encontrou trufa vermelha, que não tem grande valor gastronómico nem de mercado, mas o seu sonho é cultivar trufa preta em Portugal. Enquanto não o concretiza, Tanka Sapkota dedica-se à saga anual de encontrar as melhores trufas brancas, para servir no menu temático que serve no Come Prime desde 2007.
Este ano, o processo teve uma dose extra de nervosismo e não pelo preço que lhe custou, entre €4.500 e €5.000 por quilo. O chef do Come Prima tinha comprado uma trufa branca de 697 gramas, para servir no almoço de apresentação à imprensa do menu especial à carta que tem disponível até 11 de novembro. O problema é que a hora de almoço estava a aproximar-se e a dita trufa ainda não tinha saído de Alba, devido a problemas de logística e transporte. A alternativa foi contactar outro fornecedor e comprar a maior que estivesse disponível. O resultado é uma corrida contra-relógio, em que uma das responsáveis da Mirko Tartufi, Anna Romina Guiliano, apanha um avião e vem pessoalmente a Lisboa, na manhã do dia do almoço, 31 de outubro, para entregar uma trufa branca com cerca de meio quilo.
Longe das 1.153 gramas da trufa branca que Tanka traz para o Come Prima em 2018, uma das maiores da história, a ‘atrasada’ trufa branca com quase 700 gramas tem agora o seu momento de glória na carta com sete pratos, entre três diferentes opções de entradas (€39,95, cada) à base de ovos biológicos cozidos a baixa temperatura; duas hipóteses de primeiro prato (€49,95, cada) – ravioli com recheio de ricota ou pasta fresca ‘cabelo de anjo’; um segundo prato (€59,95) – escalopes de lombinhos de vitela com manteiga dos Açores e pasta fresca; e uma mousse de chocolate com 80% de cacau de Trinidad e Tobago, ricota e creme de castanha (€39,95).
A opção por um menu com vários pratos à escolha é propositada e não é novidade no Come Prima. Desde sempre que Tanka Sapkota procura tornar a trufa branca acessível, permitindo que qualquer pessoa possa pelo menos degustar um prato, nem que seja uma vez na vida. Todos, claro está, cobertos com lascas de trufa branca, acrescentadas quando o prato já está na mesa, para manter o seu aroma característico. E não só. Enquanto Tanka procede a esta operação de finalização, há sempre alguém atrás dele com uma caixa com papel de cozinha e tampa, onde a trufa é guardada imediatamente a seguir.
Se depois de encontradas são desenterradas delicadamente e mantidas na terra que as envolve, para evitar que a textura exterior seja alterada, quando chegam à cozinha os cuidados são redobrados. Porque, só com o contacto com o ar, perdem entre 3% e 5% do peso devido ao processo natural de desidratação. Enquanto não são servidas, quanto mais tempo estiverem enroladas em papel e guardadas no frigorífico numa caixa fechada, melhor. É isto que garante à trufa branca o cheiro forte e inebriante, semelhante ao do gás ou a um misto de queijo fermentado com alho, para os narizes mais apurados. Impossível de não reconhecer. Exceto por quem seja distraído e com problemas de olfato e confunda trufas brancas com queijo parmesão.
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