Erámos sete ou oito. Tínhamos acabado de jantar num restaurante em Lisboa e de negociar o preço de duas garrafas de vinho com o empregado de mesa. Foi uma das poucas noites quentes do ano, daquelas verdadeiramente de verão em que o algodão do vestido que usava mais parecia lã. Subimos a colina até ao miradouro. Caminhámos e encontrámo-lo fechado. Em obras, percebemos nos instantes seguintes. Com a mesma rapidez demos conta de um pequeno espaço entre as vedações que nos impedia de chegar aonde queríamos. Qualquer um de nós conseguia passar sem problema. Pássamos. Música, vinho branco gelado, amigos e muita conversa. A cada barulho de carro a aproximar-se as cabeças viravam e o volume das vozes baixava. Não estávamos a fazer nada de mal mas cada um nós sabia que não era suposto estarmos ali.
O tempo correu e estivemos sempre em alerta. “Olha, agora é que vem lá a polícia”, lembro-me de ouvir alguém dizer. Não fugimos. O mais provável era que nos pedissem apenas para ir embora. Assim foi. Os polícias saíram do carro, perguntaram se sabíamos que não podíamos estar a ali e pediram para nos irmos embora. Assim fizemos.
Havia um silêncio generalizado, apenas interrompido uma vez por outra por um de nós que dizia algo como “tem razão, já estamos a ir”. Nunca foi medo. Parecíamos miúdos que foram apanhados pela mãe a comer bolachas antes do jantar quando claramente já lhes tinham dito que não. Fizemos asneira.
Foi a única vez que tive um encontro com a polícia.
Dei por mim exatamente com a mesma tensão numa destas manhãs. O chefe de missão e o capitão do Alan Kurdi reuniram a tripulação e todos os voluntários na sala. “As autoridades portuárias vêm cá. Vão fazer a inspeção.” Ali fez-se o mesmo silêncio que na noite do miradouro. Reconheci nos rostos a mesma expressão apreensiva. Todos se levantarem sem barulho e arrumaram uma vez mais tudo aquilo que já estava arrumado. Não queriam facilitar, qualquer deslize podia ser o suficiente para o Alan Kurdi ficar em terra.
A inspeção chegou 18 minutos mais cedo. “Já aí estão.” Os voluntários juntaram-se na sala, a tripulação no convés. Silêncio. “Estão lá em cima com o capitão.”
A inspeção também acabou muito antes do previsto. “Só queriam ver algumas coisas que tinham já identificadas.” Nunca desceram à sala ou à cozinha. Há uns meses, o Alan Kurdi foi impedido de continuar a sair para o Mediterrâneo pelas autoridades italianas, que consideraram que o navio não cumpria alguns regulamentos sanitários, embora as autoridades alemãs, bandeira com que navegam, digam o contrário: está tudo seguro e dentro da legalidade. Ainda assim, a tripulação viajou de Itália para Espanha com o compromisso de fazer os melhoramentos exigidos. Já estão feitos mas ainda esperam pela autorização.
Por várias vezes a organização não-governamental que opera o navio, a Sea Eye, já acusou as autoridades italianas de criminalizam o salvamento e resgate no Mediterrâneo - atualmente há um voluntário português, Miguel Duarte, a ser investigado por aquilo que Itália define como crime de “auxílio à imigração ilegal”, depois de ter estado ao serviço de uma outra ONG.
Poucos viram a polícia que entrou no barco. “Eles” e “nós”: era assim que nas conversas e nos burburinhos se falava no assunto. “Eles” e nós”. O capitão desceu à sala e anunciou que faltavam as versões originais de três documentos. Dois ficaram de imediato resolvidos. O terceiro demorou um pouco mais. E isso atrasou a saída do Alan Kurdi de Burriana, no sul de Espanha, até ao centro do Mediterrâneo.
A polícia não deixa de ser uma autoridade com poder de decisão para mudar o curso de algo na vida de alguém. A diferença é que, independentemente do grau de gravidade, o que eu e os meus amigos fizemos naquela noite no miradouro era errado. Aqui tenho muitas dúvidas de que o seja.
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