Crónica

#AlanKurdi 2. Todas as casas com gente dentro têm um tapete

#AlanKurdi 2. Todas as casas com gente dentro têm um tapete
João Carlos Santos

Esta é a história de um tapete, de uma canção e como podemos encontrar casa numa pizza. Em setembro, o Expresso vai estar a bordo do navio de salvamento e resgate Alan Kurdi, operado pela Organização não governamental alemã Sea-Eye

#AlanKurdi 2. Todas as casas com gente dentro têm um tapete

Marta Gonçalves

A bordo do navio Alan Kurdi

Mudei de casa há pouco mais de um ano pela primeira vez. Até aos 25 anos desconhecia por completo a loucura de transportar uma vida de um lugar para outro. Ainda me doem as pernas e os braços se pensar nas tralhas e caixas acartadas escada a baixo e, não muito depois, escada acima. O caos durou semanas. Meses, na verdade. Nada estava arrumado. Ainda assim, logo na primeira noite que ali dormi - num colchão no chão porque, claro, não havia cama - uma coisa estava no lugar: o tapete junto à porta da entrada.

Aquele era o meu espaço e quem passasse junto à porta ficaria a saber que entre aquelas paredes já havia vida. Todas as casas com gente dentro têm um tapete.

O Alan Kurdi também.

A porta de madeira está sempre aberta, entra quem quer, sai quem precisa. O tapete lá está. E, caso dúvidas existissem, tem escrito “home”. A verdade é que ninguém o usa para arrastar os pés e limpar as solas das botas de trabalho. Chegam, atravessam a porta, por vezes põem-lhe o pé em cima, mas seguem sempre caminho. Nunca param. E, acreditem, os sapatos que os tripulantes de um navio em manutenção usam estão bastante sujos.

Loading...

“O pequeno-almoço é as 07h30, o almoço ao 12h00, o jantar às 18h30.” Sempre. O aviso é feito logo nas horas iniciais da missão. O rigor dos horários explica-se assim: apenas nesses momentos todas as pessoas conseguem estar juntas. Por mais inacreditável que pareça – eu acharia um exagero se alguém me contasse – num navio com mais de 20 pessoas é bem possível só nos cruzarmos com duas ou três ao longo de todo o dia. Os engenheiros estão nas catacumbas entre botões, alavancas e outros comandos que executam funções que não consigo imaginar, enquanto os cozinheiros, entre preparar, cozinhar e arrumar acabam por pouco sair de junto do fogão. Os médicos estão no hospital, o capitão ao comando, todos andam trocados e a revezar-se entre turnos de vigia e as horas de sono.

Restam apenas os encontros à refeição. E como uma família que chega ao fim de um dia de trabalho a casa, assim que alguém se senta na mesa corrida onde não há lugares marcados, surge a primeira pergunta: “como foi o teu dia? O que fizeste?”

No exato momento em que acabo de escrever estas palavras sou interrompida por música. Pelo canto do olho vejo a cozinha. Joshua, o primeiro oficial do Alan Kurdi, vai cozinhar. Gaba-se de ser um dos que melhor conhece as manhas do forno – até porque já são tantas as missões que traz na sua história que deixou de as contar. “O dia da pizza é um dos pontos altos. Todos sabemos que acontece, tornou-se quase uma tradição. Ele tem treinado imenso para fazer a massa perfeita”, conta um dos voluntários.

Vejo-o a estender a base que esteve a levedar por um algum tempo, corta os ingredientes, prepara o molho de tomate e o queijo. Ouve música, canta. As canções continuam sempre a tocar.

Meio-dia e a primeira pizza sai do forno. Tripulantes e voluntários chegam para almoçar e com a mesma velocidade que as fatias desaparecem, Joshua traz mais acabadas de fazer. “De atum e espinafres, a próxima é vegetariana.” E continua. Mais uma e outra e outra. “Ainda têm fome para mais? Eu posso pôr mais no forno. Digam-me se querem cinco ou 17 e eu faço.”

A minha tia tem uma frase célebre – de tal forma repetida até à exaustão que o meu afilhado de dois anos já a diz. “Há lá mais.” O lá é a cozinha. O mais é a comida. Ela é daquelas pessoas que cozinha para 15 quando à mesa só tem sete. Cozinha para 20 quando só somos dez. Ela diz que é porque nunca sabe quantos vão aparecer. Eu acho que é porque ela já não o sabe fazer de outra maneira.

Um navio também pode ser casa. E há instantes em que parece que os nossos também estão aqui.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate