Opinião

A Europa está numa guerra cultural com os EUA de Trump – e não deve ter medo de lutar

A Europa está numa guerra cultural com os EUA de Trump – e não deve ter medo de lutar

André Wilkens e Paweł Zerka

André Wilkens é diretor da European Cultural Foundation (ECF) e Paweł Zerka é investigador principal no European Council on Foreign Relations (ECFR)

Seja intencional ou não, a guerra cultural de Trump oferece aos europeus uma bússola. Os líderes dos partidos políticos, dos governos nacionais e das instituições da UE não podem dar-se ao luxo de ir por atalhos

Desde que Donald Trump regressou à Casa Branca, os líderes europeus têm mostrado dificuldades em definir o que está a acontecer à relação transatlântica. Trata-se sobretudo de questões de comércio e da Administração Trump obter benefícios através de tarifas? Trata-se principalmente de despesas com a defesa e partilha de encargos da NATO, um debate perene agravado pela viragem de Washington para a Ásia? Ou será que se trata de ambos?

Ver esta relação apenas através de um prisma de segurança ou economia é ignorar as questões mais complexas. O que está a acontecer é mais abrangente, mais grave e não se resume apenas a uma questão política. Trata-se de uma guerra cultural, na qual os valores e a identidade da Europa estão em jogo. E esta guerra cultural decorre em dois níveis.

Em primeiro lugar, e já sem grandes dúvidas, os EUA de Trump procuram mudar o centro ideológico da política europeia: apoiam aliados com ideias semelhantes em toda a UE e reformulam o debate sobre o significado do “Ocidente”, da liberdade e da democracia. O discurso que o vice-presidente norte-americano, J.D. Vance, fez em Munique, em fevereiro, foi a manifestação mais ruidosa disto mesmo.

O segundo nível é mais subtil, mas cada vez mais reconhecido pelos europeus: a Administração dos EUA apresenta a Europa como dependente, ingénua e estrategicamente imatura. A disputa de tarifas, a Cimeira da Nato, as negociações de paz na Ucrânia – todos estes eventos se tornaram momentos de humilhação para a Europa. E a humilhação nunca se resume apenas à política: trata-se de identidade e, em última análise, de cultura. A questão é se os europeus se consideram autónomos e confiantes ou se aceitam o papel de subordinados, ou até mesmo vassalos.

Estes dois níveis reforçam-se mutuamente. A batalha sobre ideologia e valores alimenta a disputa mais profunda sobre identidade e autonomia: com os líderes nacionais obcecados por divisões internas – e alguns até a usar bonés alusivos a Trump –, a Europa torna-se menos capaz de se emancipar ou de resistir ao tratamento depreciativo de Trump. Por outro lado, a luta pela identidade molda a frente ideológica: quando a Europa parece pequena nas suas relações com os EUA, os trumpistas podem reivindicar não só superioridade material, mas também moral, ao liderar com a sua versão do Ocidente.

Trump pode empreender esta guerra porque os europeus assim o deixam. O presidente norte-americano e os seus acólitos exploram lacunas na opinião pública, em Estados-membros que estão polarizados sobre a forma como as pessoas veem a UE e onde grandes segmentos da sociedade simpatizam com o estilo MAGA. Exploram a hesitação nas diferentes capitais e em Bruxelas, onde os líderes temem tarifas, a retirada de tropas ou o cancelamento de projetos no setor da energia. Além disso, podem contar com os seus aliados na Europa – Orbán, Meloni, Nawrocki – para aprofundar as divisões e sabotar a determinação coletiva. Enquanto isso, é frequente vermos os partidos que deveriam defender os valores liberais a desviarem-se “um pouco para a direita” na falsa esperança de apaziguar os eleitores.

O paradoxo é que a Europa tem cartas fortes para jogar. O European Sentiment Compass 2025 de hoje mostra que o sentimento se tem consolidado nos últimos anos, moldado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia. A confiança na UE está no seu nível mais alto desde 2007. Em quase todos os Estados-membros, a maioria sente-se ligada à Europa, identifica-se como cidadã da UE e está otimista em relação ao futuro do bloco europeu. Cada vez mais, as pessoas veem a Europa não apenas como um projeto económico, mas como uma comunidade de valores, segurança e destino comum.

Este sentimento dá um incentivo aos líderes, mas apenas se saírem das suas zonas de conforto. Muitos ainda parecem sonhar com relações transatlânticas “normais” depois da saída de Trump do poder. Mas, como observou recentemente Sabine Weyand, a principal responsável pelo comércio da UE: “a nostalgia não é uma estratégia”. Os líderes devem investir na autonomia da Europa, forjar parcerias para além dos EUA e defender políticas – desde a regulamentação digital aos acordos de comércio livre – como expressões dos valores europeus.

Mas talvez a lição mais difícil para os líderes europeus seja que, para assumir o controlo da sua própria história, terão de arriscar perder alguns dos confortos transatlânticos da Europa. No seu discurso anual, Ursula von der Leyen começou, de forma ousada, por afirmar que “a Europa está em luta”, mas depois não voltou a mencionar Trump ou a cultura nem uma única vez. Foi preciso um eurodeputado sugerir que a Europa enfrenta uma guerra cultural, e que esta não está a ser travada apenas a partir do Leste.

Isto não significa que a Europa deva provocar Trump constantemente. Por vezes, é necessário ganhar tempo – quer para manter as tropas norte-americanas envolvidas na defesa europeia e no apoio à Ucrânia, quer para evitar uma guerra tarifária em grande escala que poderia devastar a economia da UE e fraturar a aliança enquanto a guerra da Rússia continua. Mas estes acordos só fazem sentido se os líderes europeus os tratarem como substitutos temporários, enquanto a Europa reforça a sua autonomia. A ilusão de um regresso indolor ao status quo é o verdadeiro anestésico.

Seja intencional ou não – e acreditamos que seja, com o objetivo de consolidar o movimento MAGA no seu país –, a guerra cultural de Trump oferece aos europeus uma bússola. Os líderes dos partidos políticos, dos governos nacionais e das instituições da UE não podem dar-se ao luxo de ir por atalhos. Ao decidirem como responder à próxima provocação de Trump, o seu primeiro pensamento deve ser: “É a cultura, estúpido!” Além disso, este raciocínio deve estender-se à forma como moldam o próximo orçamento da UE e como enquadram as suas próximas estratégias eleitorais. O que está em jogo é nada menos do que definir o significado da Europa – e do Ocidente – nas próximas décadas.


André Wilkens é diretor da European Cultural Foundation (ECF).

Paweł Zerka é investigador principal no European Council on Foreign Relations (ECFR).

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