Opinião

Estará João Ferreira a tornar-se no comunista de que a direita gosta?

Estará João Ferreira a tornar-se no comunista de que a direita gosta?

João Costa

Professor universitário, ex-ministro da Educação

O jogo que o PCP resolveu jogar em Lisboa é triste. Não lendo o contexto destas eleições autárquicas, o significado que assumem para a cidade e para o país, optou pelo “orgulhosamente só” (de má memória) em vez de se associar à coligação de esquerda que se formou. Este orgulho solitário poderá custar muito caro à cidade e, por isso, a direita está em êxtase com a candidatura de João Ferreira

O resultado das eleições autárquicas em Lisboa é importante para os lisboetas. A cidade está suja, muito suja, há um problema sério de higiene. Há um drama na habitação, com a impossibilidade real de se viver na cidade, a não ser que se seja nómada digital ou muito rico. A cidade abraçou o turismo sem que o executivo se preocupasse em avaliar, prevenir e acautelar a sobrecarga nas infraestruturas e equipamentos. Os últimos 4 anos foram feitos de inaugurações de obras herdadas ou de deslumbramentos com eventos brilhantes para quem não é de cá (os summits, as Tribecas e os unicórnios…). O tik-tok viveu de vídeos do Presidente em que ora brincava com mágicos, ora iludia com magia, ora negava a realidade, desviando as atenções para os dados falsos da segurança, em vez de mostrar os dados reais da falta de higiene e da crise da habitação. A desresponsabilização e a vitimização quase doentia sobrepuseram-se à vontade de fazer.

Mudar a gestão da Câmara será entregá-la a quem queira resolver problemas estruturais graves, para que seja possível viver em Lisboa. Nas câmaras municipais, o Presidente eleito é quem tem mais um voto. Tenho encontrado muitas pessoas amigas que não sabem isto e que acham que é possível fazer coligações pós-eleitorais, como no Governo. O Presidente é quem ganha, ponto. É neste contexto que o jogo que o PCP resolveu jogar em Lisboa é triste. Não lendo o contexto destas eleições autárquicas, o significado que assumem para a cidade e para o país, optou pelo “orgulhosamente só” (de má memória) em vez de se associar à coligação de esquerda que se formou. Este orgulho solitário poderá custar muito caro à cidade e, por isso, a direita está em êxtase com a candidatura de João Ferreira.

O Expresso divulgou o que já era sabido nalguns círculos. O PCP foi desafiado a fazer parte, mas recusou, podendo até ter assumido a vice-presidência da Câmara de Lisboa. Esta proposta seria a procura de fortalecer convergências, encontrar caminhos comuns, e mudar o estado da cidade. Teria sido fácil ao PCP aceitar, porque tem à frente da coligação “Viver Lisboa” Alexandra Leitão, identificada como favorável a convergências à esquerda, protagonista da execução de políticas como a operacionalização dos manuais escolares (proposta do PCP) ou da reposição da legalidade no financiamento público a escolas privadas. Tinha ainda o caminho facilitado por estar perante alguém que não integrou, até aqui, equipas e listas no Município de Lisboa, podendo, inclusive, cortar com decisões anteriores do PS, como a viabilização dos orçamentos ou outras que tenham contribuído para o estado da cidade. Integrando a coligação, o PCP influenciaria e sairia do conforto da oposição inconsequente para a tomada de decisão na gestão.

Podem dar-se todas as justificações e reconhecer-se a sua validade. O PCP tem uma posição assumida de não se coligar em lado nenhum do país, conforme noticiado no Expresso. Para o PCP, Lisboa, Fundão e Bragança são iguais, o que mostra que é irrelevante a leitura do contexto específico para a tomada de decisão. Talvez seja assim também na gestão municipal. Não interessa onde se está, porque tudo é centralismo. Não interessa decidir Lisboa, porque a decisão é central.

João Ferreira teve um bom desempenho nos debates. Tem 12 anos de vereação, mal seria se não soubesse falar da cidade e dos seus problemas com propriedade. Mas estes 12 anos nunca foram de compromisso total com Lisboa. Acumulou a vereação com o estatuto de eurodeputado, dividido entre Bruxelas e Lisboa e, pelo meio, ainda tentou a Presidência da República. Parece ser mais um caso de candidato a tudo do que de compromisso único com um projeto político. Tenho muitas dúvidas do compromisso e da eficácia de quem esteve de terça a sexta em Bruxelas e ao fim-de-semana na cidade cujos dossiês devia acompanhar. Faz lembrar o outro que se candidata a tudo. Teria agora a oportunidade de se dedicar em exclusivo à autarquia.

Lisboa é um caso claríssimo. A fragmentação da esquerda pode dar a vitória à direita. Para o PCP tanto faz, mas esquece-se que alguns dos melhores momentos da gestão da cidade estão associados aos tempos em que se coligou para governar. E os tempos de radicalismo à direita (do Chega, da IL e da gestão de Lisboa) convidam à coragem de decidir com a razão. O pragmatismo de preferir mostrar que existe, sendo-lhe indiferente manter a gestão desastrosa de Moedas, esbarra na ausência de convicção sobre uma mudança para a cidade de que poderia fazer parte.

O mais curioso das últimas duas semanas tem sido o amor dedicado a João Ferreira pelo comentariado e pelo universo paralelo das redes sociais. João Ferreira está no processo de se tornar no comunista de que a direita gosta. A direita, até no Observador!, faz encómios diários a João Ferreira. Tornaram-se fiéis defensores do comunismo que abominavam? Tornaram-se isentos analistas, como se não soubéssemos, antes de cada debate, as notas que vão dar, neste exercício absurdo em que os comentários ocupam o quádruplo do tempo dos debates? Não. Simplesmente estão apostados em garantir mais uns quantos votos para o PCP na esperança de que a contabilidade final coloque a coligação Viver Lisboa um voto abaixo do resultado de Carlos Moedas. Para a direita, o elogio a João Ferreira pode ser o passaporte para a vitória. E o PCP presta-se a isto, menos por convicção do que por exercício de sobrevivência e de mostrar ao resto do país que ainda consegue em Lisboa o que não consegue noutros lados. O país precisa do PCP, que devia voltar a ser o que já foi: um partido que defende os trabalhadores como nenhum outro. Fá-lo-á tanto melhor quanto entender a realidade e isso foi o que desistiu de fazer em Lisboa.

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