Quem quer morrer por Tallin?
Se os europeus não querem dar a vida a combater a Rússia, ou ver a NATO desaparecer, têm de garantir que a Ucrânia não é derrotada. Coisa que os ucranianos tentam que percebamos
Consultor em Assuntos Europeus
Se os europeus não querem dar a vida a combater a Rússia, ou ver a NATO desaparecer, têm de garantir que a Ucrânia não é derrotada. Coisa que os ucranianos tentam que percebamos
Os ucranianos não querem entrar na União Europeia por favor, não querem apoio militar por solidariedade e são mais europeus do que nós éramos em 1986, ou os europeus do centro e leste da Europa quando aderiram. E menos americanófilos, agora. Além disso, têm muito mais força e resolução do que esperança, e muito mais clareza e precisão do que nós. Sabem o que temem, o que querem, o que devem fazer e o que precisam de oferecer à Europa.
Ao fim de cinco curtos dias de visita à Ucrânia, a Lviv, a semana passada, promovida pela representação em Portugal da União Europeia com a Agência Erasmus+, há três convicções que saem reforçadas: sobre o lugar europeu da Ucrânia, sobre o nosso interesse nesta guerra, e sobre o que a Europa é, e não era, e o que terá de ser.
Desde o início da guerra que o governo ucraniano tem insistido no objectivo da adesão à União Europeia. Fá-lo tanto por sinceridade como por estratégia.
A Rússia disse repetidas vezes que era a eventual adesão à NATO que Moscovo considerava uma ameaça. Mas a verdade é que essa possibilidade estava distante quando a guerra começou. Já o caminho em direcção à União Europeia estava mais próximo e tem sido constantemente torpedeado por Putin. Primeiro envenenou um candidato presidencial pró-europeu, depois impediu a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia e, finalmente, quis depor o regime pela força, ocupar uma parte do território e impedir que o que sobrasse do país entrasse na Europa. O que Putin teme é a democracia à porta, e isso é muito mais promovido por uma adesão à União Europeia do que à NATO.
A guerra da Ucrânia fez os europeus descobrirem que o seu modelo era um sonho pelo qual havia quem estivesse disposto a lutar. Não é só a independência. É a liberdade. É a democracia, que debaixo da influência russa nunca haveria. Na década de oitenta e noventa, o sonho seria americano. Agora, não é. Washington já não inspira. Os ucranianos fizeram-nos descobrir que existe um sonho europeu. Devemos-lhes isso.
De vez em quando, normalmente quando se visita o país ou se olha para a capacidade de invenção, resistência e determinação ucraniana, alguém diz, entre a graça e a admiração, que a Europa (e a NATO) é que deveria aderir à Ucrânia. Ironias à parte, o que acontece é que a Ucrânia em guerra é mais funcional, inovadora, digital e capaz de comunicar do que muitos dos Estados europeus (na Ucrânia há uma aplicação que avisa quando a Rússia lançou um drone, um míssil ou fez levantar um Mig, em Portugal talvez venha a haver uma app há para dizer quais as maternidades que não estão fechadas no fim de semana que vem). E a Ucrânia está mais preparada para combater esta guerra do que os exércitos da Aliança atlântica. “Deixem-nos entrar se querem estar mais protegidos”, dizem os dirigentes ucranianos com que se fala. E, com clareza acutilante, alguns: “querem que as nossas matérias-primas críticas, essenciais para a indústria militar, fiquem na Europa ou fiquem para a Rússia?”. Mais claro sobre quanto é do interesse europeu que a Ucrânia ganhe e entre na União Europeia não é preciso.
E quando os ucranianos pedem aos europeus (e aos americanos, mas com menos expectativa) que apoiem militarmente a Ucrânia, não evocam a ideia de solidariedade. Não é porque a Ucrânia está a ser atacada que deve ser ajudada. Claro que também deve ser. Mas os ucranianos sabem que esse argumento, legítimo e válido, é politicamente frágil. Se os europeus acharem que estão a ser solidários podem, perante o custo da guerra, concluir que a solidariedade lhes sai cara. Daí que prefiram usar argumentos que tocam mais onde é importante.
Recordando as obrigações de quem é membro da NATO, e as aflições de quem faz parte da União Europeia, recordam com clareza: “se não pararmos a Rússia aqui, se a seguir Moscovo atacar a Estónia e ocupar a capital, quem está disposto a morrer por Tallin?” Poucos europeus, certamente.
Quanto mais os Estados Unidos se afastam da Europa e da tradição democrata e liberal que conhecíamos, mais a guerra da Ucrânia é fundamentalmente nossa. Se não a queremos combater, teremos de garantir que os ucranianos não a perdem. E cada centímetro de terra que a Rússia não conquista é mais um pedaço da nossa segurança que os ucranianos garantem.
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