QUANDO A TRAGÉDIA É SEMPRE SURPRESA
Mas para lá dos holofotes, sobra uma verdade crua: quando a tragédia emerge do asfalto que ruí, do viaduto que desaba ou do incêndio que alastra, o Estado português revela-se muitas vezes incapaz de oferecer respostas condignas às vítimas e às suas famílias.
E, no entanto, há uma responsabilidade — jurídica, política, moral — que está muito para lá do cheque das indemnizações protocolarmente prometidas.
A cada calamidade é sempre a mesma anatomia: declarações redondas de compaixão, promessas de apuramento célere de responsabilidades, a habitual invocação do “erro humano”, do “evento imprevisível” ou do “contexto excecional”.
É como se o discurso da excecionalidade eximisse, por si só, o Estado dos seus erros de manutenção, das décadas de desinvestimento, do abandono prolongado dos alertas técnicos. Mas as vítimas, essas, não são excecionais: são rostos, histórias, famílias que veem as suas vidas truncadas pelo descuido público, pela má gestão do comum, pelo alheamento que é, afinal, a verdadeira invariável nacional.
CULPA COLECTIVA, DEVER INDIVIDUAL
O caso do elevador centenário que descarrilou, ferindo Lisboa e ceifando vidas, mostrou-nos que a catástrofe é sempre também um espelho.
Foi a ausência de manutenção, sussurram todos à Glória; é fácil diagnosticar responsabilidades entre cafés e tertúlias, todos engenheiros por um dia, cada qual apontando o dedo a quem deveria ter agido.
Mas este drama coletivo revela uma segunda camada — aquela em que cada cidadão, cada técnico, cada gestor público é convocado a olhar para o espelho e perguntar: "Cumpri mesmo o meu dever, ou adiei, distraído pelo conforto da rotina?" Sempre que despachamos o que importa, hipotecamos o futuro e arriscamos vidas.
A reflexão sobre a responsabilidade do Estado — feita de relatórios esquecidos, promessas de investimento por cumprir e contas feitas ao cêntimo quando se trata de salvar vidas — obriga-nos a sair do calor do momento noticioso e a olhar de frente para a falta de manutenção que mina hospitais, estradas, infraestruturas históricas e serviços públicos essenciais.
Basta uma inspeção sumária ao que tem sido notícia nos últimos 10 anos para perceber a tragédia anunciada: o colapso das estruturas, os corredores das urgências apinhados, a burocracia que adia decisões, o investimento adiado em nome do défice, o cálculo tacanho do que é “custo” e do que é “valor”.
O LABIRINTO ONDE NINGUÉM RESPONDE
O exemplo mais trágico e emblemático continua a ser a ponte de Entre-os-Rios: há mais de duas décadas, o colapso de uma infraestrutura esquecida deixou o país em choque, matou 59 pessoas e tornou-se símbolo nacional do preço da manutenção adiada e da busca incessante por responsabilidades sempre difusas.
Decorrem investigações, realizam-se comissões, multiplicam-se as garantias de que não voltará a acontecer — mas, ciclicamente, surge novo desastre, reciclamos o discurso e a culpa evapora-se entre departamentos.
Em muitos departamentos do Estado e das grandes empresas, o organigrama tornou-se um labirinto tão denso e hierarquizado que se dilui a noção de responsabilidade.
Há sempre alguém “acima” ou “ao lado” a quem cabe decidir — ou adiar —, sempre um despacho pendente, um processo perdido em trânsito entre departamentos, uma assinatura em falta ou uma comissão a deliberar.
No fim, a realidade é cruel: nos sistemas mais pesados, não se encontra nunca um verdadeiro responsável. A máquina burocrática foi, assim, afinada para a fuga à responsabilidade individual, permitindo que todos participem da rotina da desculpa, mas ninguém responda por nada quando corre mal.
Numa grande empresa, um trabalhador morreu porque o chão resolveu, democraticamente, desaparecer debaixo dos seus pés. Felizmente, havia diretores para todos os gostos — segurança, operações, gestão de risco, nomes de peso — mas, na hora do acidente, a responsabilidade evaporou mais rápido que o comunicado oficial.
Afinal, ninguém pode ser culpado quando a estrutura tem tantos cargos sofisticados e títulos impecáveis — é uma pena que nenhum deles sirva para garantir que alguém, um dia, tome conta do pavimento.
Vivemos, em Portugal, demasiado habituados a prantear tragédias e demasiado pouco habituados a exigir responsabilidades. Porque a responsabilidade do Estado não se esgota na resposta posterior ao desastre. Não chega “compensar” as famílias; é preciso garantir que não se lhes oferece, de novo, o mesmo risco como prémio de consolação.
A falta de manutenção — infraestrutural, social e até ética — é a verdadeira epidemia que corrói o edifício do Estado de direito e clama por uma abordagem preventiva, não apenas pela minuciosa repartição de culpas após o desastre.
Mas há uma responsabilidade ainda mais funda: a individual. Epicuro lembrava que a excelência não é opção, é dever — sobretudo quando vidas dependem do rigor de cada um de nós. Se cada técnico, gestor ou decisor praticasse o rigor do olhar atento, talvez hoje não enterrássemos vítimas de serviços que falham por descuido. A responsabilidade é coletiva, sim, mas começa sempre na ação (ou omissão) de cada um.
NÃO BASTA CHORAR, É PRECISO CUIDAR
Insisto, o Estado não pode ser sempre chamado a chorar os mortos e depois regressar à apatia burocrática que engendra as nossas desgraças.
O verdadeiro respeito pela vítima começa antes do desastre, na manutenção honesta, no investimento responsável, na promessa cumprida de serviço público — e no rigor diário de cada pessoa com deveres públicos ou privados.
Enquanto não fizermos esta reflexão coletiva (e individual), e não mudarmos o padrão, estaremos apenas a garantir que as vítimas do presente sejam a estatística do futuro.
Talvez aquilo que mais falta ao Estado português seja, enfim, uma memória suficientemente longa para saber que cada vida salva começa numa mata limpa, num cabo de segurança verificado, num pilar reforçado, num alerta ouvido a tempo — e numa decisão ética tomada por cada cidadão.
Já não basta chorar. É preciso agir. E cuidar, todos os dias.