Opinião

IA às escondidas. Quem nunca?

IA às escondidas. Quem nunca?

Hugo Filipe Coelho

Diretor de política digital do Cambridge Centre for Alternative Finance

A IA não está a entrar no mundo do trabalho através de estratégias de gestão. Está a infiltrar-se de forma improvisada, pelas mãos de trabalhadores movidos pelo interesse próprio. Há uma certa ironia nisto

Durante algum tempo, o tema estava reservado a tecnólogos e opinadores: “Quanto tempo até que a inteligência artificial acabe com o trabalho?” A pergunta era lançada em tom de euforia ou de distopia.

Hoje, a discussão é mais democrática e prosaica. Quase todos têm algo a dizer. Ainda há espaço para a reflexão política, mas o que domina são relatos sobre como cada um usa o ChatGPT ou outra aplicação para ajudar a corrigir emails para o cliente ou o chefe, fazer relatórios, preparar slides e despachar outras tarefas do dia-a-dia.

Histórias destas não são estatística, nem fazem ciência. Mas permitem entrever uma hipótese: a IA não está a entrar no mundo do trabalho através de estratégias de gestão. Está a infiltrar-se de forma improvisada, pelas mãos de trabalhadores movidos pelo interesse próprio.

Há uma certa ironia nisto.

Medir o impacto económico da IA é um das questões do nosso tempo. Os inúmeros relatórios publicados divergem quanto à percentagem de tarefas automatizadas ou ao efeito no PIB. Daron Acemoglu, vencedor do Prémio Nobel, estima que o impacto no PIB não vá além de 1-2% numa década. É um dos céticos mais conhecidos. Do outro lado do espectro estão os investidores na bolsa americana, que apostam num múltiplo desse número.

Ainda assim, quase todos partilham um pressuposto: que a adoção da IA será conduzida do topo para a base; concebida por gestores e consultores, que ditarão que funções automatizar e redesenharão o papel dos trabalhadores.

Talvez seja assim a médio prazo. Mas não é assim que a história começa em muitas empresas.

Há alguns dados que parecem confirmar um padrão de adoção da IA liderada pelos trabalhadores. Um relatório da Reserva Federal dos EUA, publicado em fevereiro, concluiu que a utilização da IA varia entre 5 e 40% nas empresas, contra 20 a 40% entre indivíduos, sobretudo em programação e áreas intensivas em conhecimento.
Um outro inquérito, da consultora Deloitte, mostra que um em cada quatro trabalhadores europeus que usam IA paga do seu bolso a subscrição. Isto apesar de não faltarem ferramentas gratuitas.

É plausível que a diferença seja ainda maior na realidade. Afinal, os incentivos de trabalhadores e empresas em usar e reportar o uso da IA são bastante distintos.

Para os trabalhadores, as barreiras ao uso são baixas e as recompensas elevadas. A IA torna-os potencialmente mais rápidos, mais eficazes. Os que a usam podem melhorar a sua posição relativa. O risco é reduzido. O incentivo para o reportar ao chefe e aos colegas também. (E é inverso ao incentivo para falar disso entre amigos.)

Para as empresas, o cálculo é diferente. Integrar a IA exige recolher dados, redesenhar fluxos de trabalho, requalificar – ou despedir – trabalhadores. Implica respeitar normas de privacidade, lidar com o escrutínio dos reguladores em alguns setores e gerir riscos reputacionais, que são mais elevados no caso da IA generativa sujeita a alucinações. Poucas empresas estão disponíveis para confiar funções críticas a um modelo de computador que nem sempre entendem. O risco não é teórico: a fintech sueca Klarna viu-se forçada a recuar depois de anunciar a substituição de trabalhadores no atendimento ao cliente por IA.

Um padrão de adoção da tecnologia por trabalhadores não é inédito. Nos anos 90 e 2000, folhas de cálculo, email e ferramentas de cloud começaram a ser usados por trabalhadores antes de serem autorizados pelos departamentos de informática das empresas. Um grupo de académicos australianos chamou-lhe “shadow user innovation”. A história repete-se.

Quais as consequências? Enquanto os trabalhadores estiverem a liderar, é pouco provável que cenários apocalípticos de despedimentos em massa se concretizem. A disrupção será mais gradual.

Empresas determinadas a cortar custos laborais (o que nem sempre deverá ser um objetivo) poderão abrandar contratações, congelar promoções ou reduzir recurso a prestadores. Há sinais desta tendência: plataformas de freelancers nos EUA e Reino Unido reportaram nos últimos anos quebras na procura e descida de preços em alguns serviços, nomeadamente tradução, escrita e design. Algumas grandes consultoras e bancos estão a reduzir os programas de estágios.

Dentro das empresas, tornar-se-á evidente uma diferença no desempenho dos trabalhadores, nomeadamente entre os que usam IA para aumentar a produtividade e os restantes. Se os primeiros serão sobretudo jovens ou os mais experientes é uma incógnita. Os mais novos são, tipicamente, mais rápidos a adotar tecnologia (que, em muitos casos, usam na sua vida pessoal) e têm um incentivo forte para compensar a falta de experiência e conhecimento. Os seniores têm o poder de desenhar fluxos de trabalho, a capacidade para detetar falhas da IA e a possibilidade de automatizar o trabalho dos que lhes reportam.

Em qualquer caso, a adoção liderada pelos trabalhadores dificilmente terá impacto uniforme na força de trabalho. Uns ascenderão, outros estagnarão e serão ultrapassados.

A adoção pelos trabalhadores é apenas o prólogo da história da IA e do trabalho. Eventualmente, as empresas e os gestores assumirão um papel mais preponderante na organização do trabalho. Nessa altura, os impactos serão mais claros e ver-se-ão nos planos de negócio e nas estatísticas.

Até lá, ignorar conversas ao jantar e em ambiente social seria não só indelicado, mas também uma oportunidade perdida para perceber o que se está a passar.


2052 é uma coluna sobre a política, economia e cultura da revolução digital.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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