Opinião

O verão não foi apenas de incêndios: a Saúde também sofreu

O verão não foi apenas de incêndios: a Saúde também sofreu

Joana Bordalo e Sá

Presidente da Federação Nacional dos Médicos

O Governo de Luís Montenegro recusou-se a negociar com a estrutura sindical que mais médicos representa no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ao escolher quem quer — e quem não quer — ouvir, decidiu tentar fraturar a classe médica e ignorar os milhares de profissionais que diariamente sustentam hospitais e centros de saúde do SNS. Preferiu interlocutores politicamente alinhados, afastando intencionalmente representantes cuja independência não lhe é conveniente. Não é apenas uma opção política: é um ataque direto ao que representa o SNS e aos seus profissionais

O verão não foi apenas de incêndios: a Saúde também sofreu. Nascer em Portugal tornou-se uma corrida no escuro. Nos últimos meses, mais de meia centena de mulheres tiveram bebés em ambulâncias, na berma da estrada ou no chão duro da rua. Não foi por escolha. E não foram as mães que falharam. Quem falhou foi Luís Montenegro e a sua gestão do SNS: urgências encerradas e linhas de triagem inoperantes ou labirínticas. E não foi apenas na margem sul do Tejo. Muitas grávidas não puderam recorrer ao seu serviço de proximidade e tiveram de se deslocar para outros hospitais: em Aveiro e Leiria, os casos drenam para Coimbra; em Braga, para Guimarães. Noutros Serviços de Urgência, como o de Santa Maria da Feira, à noite predominam prestadores de serviço e internos em formação.

Com autoridade vem responsabilidade. Mas, em vez de assumir as suas, o Executivo preferiu culpar as grávidas e os profissionais da linha SNS24. É fácil falar da segurança dos partos em Portugal quando se vive confortavelmente e a curta distância monetária de um serviço de saúde privado. Para quem vive do seu trabalho e depende dos cuidados do SNS, o acesso a um parto seguro pode transformar-se num calvário de muitos quilómetros, colocando vidas em risco.

Anunciou-se agora, com pompa, que o Hospital Garcia de Orta, em Almada, terá novamente urgências de Obstetrícia a funcionar 24 horas, 7 dias por semana. A solução foi “importar” médicos do setor privado, oferecendo-lhes condições que deviam ser para todos: reposição do número de dias de férias e remunerações mais justas. Criaram novamente desigualdades nas equipas e não resolveram o problema da proximidade: as urgências de Obstetrícia do Barreiro e de Setúbal continuarão fechadas em muitos dias. A promessa de que as urgências “não voltam a fechar” já tinha sido feita no ano passado. Foi, e será novamente, uma mentira repetida quando se continua a não ouvir os profissionais no terreno.

Esta crise tem responsáveis claros. O Governo de Luís Montenegro continua a recusar-se a discutir salários dignos e condições de trabalho que fixem médicos no SNS. Sem médicos, não há urgências abertas. Sem urgências abertas, não há algoritmos ou linhas telefónicas que assegurem segurança para mães e bebés — ontem, hoje ou amanhã. Surpreendentemente, a FNAM tomou conhecimento pela comunicação social de novos diplomas sobre prestadores de serviço ou mobilidade médica. Esta discussão por procuração não é diálogo social: é desrespeito pelo SNS e por todos os que nele trabalham.

Apontam igualmente as parcerias público-privadas como solução, mas todos sabemos, por variados exemplos, que os casos complexos e mais dispendiosos — tratamentos de oncologia,

de doenças crónicas ou raras — ficarão sempre de fora. Ao mesmo tempo, continuam a canalizar os escassos recursos públicos para um setor privado que apenas escolherá os doentes “rentáveis”, deixando todos os outros na despesa direta do SNS. O mesmo sucede com os milhões transferidos para as farmácias vacinarem em vez de reforçar algo que era reconhecidamente uma qualidade dos centros de saúde, ou com a linha SNS24, que encaminha milhares de utentes para empresas privadas de teleconsultas, sem antes esgotar a capacidade instalada nos cuidados do próprio SNS.

Nesta mesma senda, surge agora o novo modelo de contratação de prestadores externos para as urgências: abre mais a porta a médicos externos ao SNS e sem especialidade, degradando a qualidade assistencial num ambiente de elevada complexidade e empurrando ainda mais os especialistas para o privado. O que se “poupa” nestas soluções míopes nem sequer é investido em tentar fixar médicos no SNS; pelo contrário, só servirá para rapidamente alimentar os grupos privados que têm vindo a anunciar mil milhões de euros em novas unidades de saúde, certos de que terão retorno assegurado.

É o projeto final da mercantilização da doença através do financiamento público. E quem perderá somos todos nós, utentes de um SNS universal e de qualidade.

No que diz respeito aos médicos do SNS, o caminho é claro: salários justos, carreiras valorizadas e investimento digno no serviço público e basilar. O nosso SNS só se salva se houver novamente gerações de médicos motivados dentro dele.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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