Opinião

A história da mudança

A história da mudança

Corina Lozovan

Investigadora e doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Até que ponto a fragmentação do mundo pode conduzir a uma transformação, à desintegração ou ao surgimento de uma nova ordem? O cenário atual revela um encadeamento de eventos interligados, resultantes de decisões históricas, cujas repercussões ainda ressoam, influenciando o teatro geopolítico da Europa e do Médio Oriente

Por onde irá a História? – pergunta que ecoa como prólogo e bússola no livro do Professor Miguel Monjardino, que, com argúcia, nos convida a percorrer os labirintos desta musa caprichosa, tantas vezes imprevisível. Tal como as correntes subterrâneas influenciam, em silêncio, o curso de um rio, também as forças invisíveis da geopolítica preparam mudanças que apenas mais tarde se revelam, na plenitude do seu significado.

É neste nevoeiro de incertezas que se anuncia, para sexta-feira, o encontro no Alasca entre o Presidente Donald Trump e Vladimir Putin, um cenário de geopolítica glacial, onde o vento cortante da guerra na Ucrânia varre a paisagem estratégica da Europa. Este tête-à-tête inicial poderá funcionar como a primeira pedra de toque para redefinir o terreno, talvez até esboçar um acordo de paz que, inevitavelmente, passará pela cedência territorial tanto por parte da Rússia como da Ucrânia. Longe de ser uma solução ideal, tal compromisso seria, no entanto, previsível no quadro realista de uma negociação ditada por forças assimétricas e pelo pragmatismo das potências.

Neste contexto, a Europa mantém-se notoriamente ausente como força motriz na construção de um acordo de paz credível, expondo uma preocupante escassez de imaginação política nas suas atuais lideranças. Esta ordem internacional cada vez mais volátil requer novas vozes dentro da União Europeia, capazes de reformar o projeto europeu e de responder com pragmatismo aos desafios do presente. A guerra russo-ucraniana, para além de um conflito territorial, representa uma gnose existencialista para o continente, impondo a clarificação do seu destino, a definição do papel a assumir no sistema global e a determinação, de forma lúcida e estratégica, do enquadramento do apoio à integração da Ucrânia, bem como das futuras relações com a Rússia.

Paralelamente, no outro extremo do tabuleiro, o conflito em Gaza ganha novas camadas com o reconhecimento do Estado da Palestina por França e, potencialmente, por outros atores como o Reino Unido, o Canadá, Malta e a Austrália. Este gesto, de relevância histórica, mas com peso sobretudo simbólico, suscita inevitavelmente interrogações sobre o seu alcance prático. O reconhecimento, per se, não constitui um roteiro para a paz, nem um verdadeiro plano político de integração.

Os esforços diplomáticos são, sem dúvida, imprescindíveis, mas a sua eficácia dependerá da construção sólida das instituições palestinianas e, sobretudo, da capacidade de Israel demonstrar reciprocidade e vontade genuína de reconhecer essa liderança como interlocutor político legítimo. Tal caminho exige, como condições mínimas delineadas na Declaração de Nova Iorque – assinada por todos os membros da Liga Árabe, pela União Europeia e por diversos outros países – o desarmamento do Hamas, a libertação dos reféns israelitas ainda detidos e a renúncia deste grupo à liderança em Gaza. Neste enquadramento, a assimetria de poder entre Israel e Palestina revela-se um obstáculo estrutural que não pode ser ignorado. Prosseguir a devastação de um território já

reduzido a escombros é insustentável e moralmente inadmissível. Impõe-se, por isso, a definição de um plano político claro e exequível, sendo que a reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, agendada para setembro, se afigura como uma oportunidade decisiva para quebrar este ciclo vicioso de destruição.

Caso a situação em Gaza se prolongue, o risco de expansão do conflito ou de implosão da ordem regional aumentará exponencialmente, com escassas probabilidades de transformação substantiva no Médio Oriente. Na verdade, falar de mudança real da ordem implica repensar a própria arquitetura do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Uma reforma desta magnitude exigiria, ipso facto, a entrada em cena de um novo ator dotado de legitimidade e capacidade para projetar estabilidade à escala global. Tal alteração constituiria um momento de reflexão histórica e, a longo prazo, poderia abrir caminho ao surgimento, no Médio Oriente e noutras regiões do mundo, de uma ordem que transcendesse a simples recomposição efémera de interesses.

O prelúdio da história inicia-se sempre com a mudança, momento em que o ser humano, tal como nos versos de Wallace Stevens, procura impor ordem à medida que pensa sobre ela, como fazem, instintivamente, a raposa e a serpente. É uma tarefa ousada: ergue capitólios e, nos seus corredores, coloca estátuas de homens considerados razoáveis. No entanto, impor não é descobrir, nem equivale a encontrar o real e conhecê-lo.

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