Ao longo do último século, a humanidade realizou conferências históricas que, a cada rutura bélica, prometeram uma nova ordem. A Conferência de Paz em Paris, 1919, a de Ialta em 1945 e a de Badung em 1955, carregaram a ambição de reconfigurar o mundo. Apesar de serem importantes, na lógica de realpolitik, estes tratados serviram sobretudo para garantir o poder dos vencedores, institucionalizando, por vezes, desigualdades e semeando ressentimentos, que mais cedo ou mais tarde, reacenderiam o fogo da guerra. O Tratado de Versalhes impôs condições duras a Alemanha e contribuiu para a ascensão de movimentos nacionalistas, enquanto que em Ialta, tivemos um encontro onde se dividiu, mais uma vez, o mundo em zonas de influências. Por sua vez, a conferência de Bandung e do Movimento dos Não-Alinhados foram notáveis e historicamente positivas, apesar das suas limitaçōes estruturais.
Hoje, o mundo encontra-se em decomposição, não no sentido literal, mas fragmentando-se em múltiplas partituras (des)ordenadas e mutáveis, com repercussões profundas na ordem global. A desigualdade abismal, as guerras assimétricas, os desafios climáticos e o avanço frenético da Inteligência Artificial, que em breve poderá alcançar a singularidade prevista por Ray Kurzweil, colocam-nos perante um horizonte inquietante. Estamos cada vez mais próximos dessa realidade e, todavia, ainda não nos apercebemos plenamente do impacto que terá nas nossas sociedades. Este ponto de não-retorno poderá marcar, ao mesmo tempo, o início e o fim da forma como vivemos hoje. Poderá a paz consolidar-se num mundo dominado pela inteligência artificial? Que organizações multilaterais estarão à altura de mediar os conflitos de forma eficaz?
A Organização das Nações Unidas celebrou, na semana passada, 80 anos desde a assinatura da Carta de São Francisco, a 26 de junho de 1945. Foi, desde então, um pilar importante da diplomacia pacífica e cooperação internacional. Hoje, contudo, encontra-se em decadência. Parte da sua impotência atual deriva das regras de um jogo de interesses geopolíticos manipulado pelas potências dominantes do pós-guerra. A complexidade do século XXI exige o fim deste modus operandi e a adopção de um novo ideal de paz, sustentado por reformas e mecanismos que lhe devolvam relevância e capacidade de ação.
Contudo, falar obsessivamente de paz não basta, pois quanto mais se fala, mais efémera e fugitiva ela se torna. Talvez a paz seja a poiesis de um mito enfraquecido, sem força cultural nem espiritual para se contrapor ao mito, muito mais omnipresente e poderoso, da guerra. A história nos mostra que a paz jamais caminhou sozinha. Os gregos personificaram-na como a deusa Eirene, filha de Zeus, associada à prosperidade (Ploutos) e irmã de Eunomia (a boa ordem) e Dike (a justiça). Isto reflete que a paz só se funda num sistema sólido de leis legítimas e numa justiça moral que seja efetivamente partilhada por todos. Contudo, a cultura contemporânea tem-se afastado desta âncora, perdendo o contacto com o âmago que sustenta a convivência pacífica. Como nos recorda Heidegger, as palavras são a morada do ser: quando se perde o significado de palavras como paz, perde-se também a capacidade de habitá-la.
Por isso, torna-se imprescindível uma nova conferência de paz que vá além de redesenhar tratados ou definir zonas de influência, recuperando a dimensão simbólica e cultural que confere sentido à paz como ideal partilhado. O maior desafio será reconstruir este valor no plano da imaginação moral das culturas e das sociedades, em consonância com a esfera diplomática e militar. Se não nos imiscuirmos verdadeiramente no resgate do mito da paz, enraizado na justiça e na boa ordem, continuaremos a repetir acordos destinados apenas a gerir o próximo conflito.
Diante deste cenário, propor tal conferência não é ingenuidade, mas antes a única alternativa racional para a nova ordem que se vislumbra. E não pode ser apenas um pacto de elites: terá de ousar semear um novo mito, no sentido mais elevado da palavra, enquanto narrativa coletiva capaz de nos definir e orientar o destino comum. Hoje, impera o mito da guerra, da violência tecnológica e da competição sem limites, ao passo que o mito da paz se revela frágil, quase alvo de escárnio.
Recuperá-lo implica uma antropologia filosófica e política capaz de reinventar a linguagem, os símbolos, a pedagogia e a própria ação política, ancorada no presente mas já orientada para o futuro que queremos construir. Sem isso, estaremos resignados aos versos de Günter Kunert: “Mas a história não traz nada de volta, embora o que repita – retorne sujo”.