Opinião

O espanto do Mesmo

O espanto do Mesmo

Cláudia Lucas Chéu

Escritora, poeta e dramaturga

A cada segundo, a sociedade estende-nos uma bandeja de esperança (a troco de dinheiro, claro) com a promessa de nos dar outra coisa que não o Mesmo. É verdade que nos acenam com “outra coisa”, tentam dizer “isto é diferente”, mas o mundo é composto do Mesmo. O que nos resta, tal como se faz com uma cadeira, é mudá-la de posição

Quando menos se espera — uma revelação. Quase sempre acontece assim. Sob a copa de uma árvore no jardim em Cascais, surgiu diante da plateia um homem visivelmente com «os pés na terra e a cabeça no ar», como diria Patrícia Portela no seu mais recente livro Manual Para Andar Espantado Por Existir. Aproximou-se das duas ou três dezenas de pessoas que aguardavam com expectativa por mais uma intervenção do Espanto — Festival Internacional de Filosofia que lhes trouxesse questões, mas que também fabricasse a costumeira manutenção da esperança. O ser humano mostra precisar de esperança como a galinha de milho, embora tanto um como outro se alimentem sobretudo do que há, do que é possível, maioritariamente de ilusão. A cada segundo, a sociedade estende-nos uma bandeja de esperança (a troco de dinheiro, claro) com a promessa de nos dar outra coisa que não o Mesmo. É verdade que nos acenam com “outra coisa”, tentam dizer “isto é diferente”, mas o mundo é composto do Mesmo. O que nos resta, tal como se faz com uma cadeira, é mudá-la de posição.

Nunca tinha pensado na possibilidade de tudo no mundo ser o Mesmo, antes de ter ouvido a intervenção do filósofo e ensaísta Manuel Curado. De repente, sob a copa das árvores — a morte anunciada da esperança, a prisão metafísica definitiva. Iluminaram-se as quatro paredes do mundo. Infelizmente, o Manuel trazia notícias menos boas, uma espécie de revelação do pessimismo no qual tudo no mundo é apenas o Mesmo e nada mais. O Manuel Curado, ao contrário de outros oradores do festival de Filosofia que trouxe a Cascais alguns dos nomes maiores nacionais e internacionais da Filosofia contemporânea, como Gilles Lipovetsky, Peter Sloterdijk, José Gil, António de Castro Caeiro, entre outros, não trazia esperança nenhuma para o Medo (tema do festival). Manuel Curado ofereceu até dinheiro à plateia incrédula para que alguém lhe mostrasse uma fenda, algo que não fosse o Mesmo. Porém, não surgiu nenhum contributo que o tirasse da prisão onde também agora, pelo menos a mim, nos tinha colocado.

A revelação do Manuel não me causou melindre ou perturbação. Apenas uma inquietação, uma comichão metafísica. Há muito tempo que não me sentia verdadeiramente surpreendida, encantada diante do paradoxo — o espanto do pessimismo. Vi beleza nisto.

Segundo o Manuel Curado, a terra do Mesmo é infindável. Todas as “salas”, "cadeiras" e tudo o que quisermos nomear são da mesma genealogia — o Mesmo. Vim depois a saber, através do próprio Manuel, que Roger Caillois (sociólogo e crítico literário francês) tem ensaios sobre, por exemplo, o que as pedras escondem. Podemos e devemos ver com atenção cada coisa porque, quando o fazemos, descobrimos que essa pedra é semelhante a outras pedras. O Mesmo. Guardei também a mais bela frase do Manuel: “A maquilhagem de uma mulher é semelhante às estrelas do céu, e os burros que a minha avó tinha eram semelhantes a tractores”. Há muitos anos que Manuel Curado estuda o mundo do Mesmo e gostaria muito de encontrar uma fenda, mas só encontra mais “salas” de uma prisão.

Mais do que escrever sobre o conceito metafísico do Mesmo, porque estou certa de não o entender totalmente ou de não o conseguir explicar, quis escrever sobre o Manuel Curado e o espanto do encontro. Basta uma pessoa para mudar o mundo — para o Mesmo. Mas fazer dessa prisão lucidez, desassossego.

A advertência final que o Manuel Curado fez à plateia de perplexos, durante o Espanto, livrou-o de qualquer responsabilidade ou culpa. Admitiu com um sorriso ter pronunciado apenas “falsidades” e recusou-se a falar sobre o amor. Não queria estragar-nos o sábado ou a vida, quem sabe. A copa das árvores não protegeu o meu ombro esquerdo do sol. Sofri um escaldão literal e metafísico. A pele, entretanto, recuperou rápido, todavia permaneceu um novo olhar sobre o mundo.

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