Chegados à era digital, ainda vivemos num país onde se multiplicam campanhas de transição digital e se alardeia a inovação como bandeira de modernidade, continua a faltar o essencial: literacia digital. É um paradoxo gritante. Mas, quem deveria liderar este esforço, quando são os próprios responsáveis por organismos públicos, institutos e gabinetes ministeriais, na maioria das vezes, quem revela menor competência digital. Assim, fica tudo na gaveta do “é urgente, mas não é prioritário”.
Enquanto isso, os criminosos evoluem à velocidade da luz. Com o impulso da Inteligência Artificial, os esquemas de fraude online sofisticam-se diariamente, ultrapassando largamente a capacidade de resposta do estado, através das forças de segurança, que insiste numa postura meramente reativa: investiga-se o que já aconteceu, arquiva-se o que não se consegue provar, e pouco ou nada se faz para prevenir.
Este é um problema grave de segurança pública. Hoje, praticamente toda a população navega, compra ou interage online. E, por mais paradoxal que seja, a sociedade pouco ou nada faz para educar digitalmente os cidadãos, porque, em boa verdade, ela própria não tem competências para o fazer. Quem educa quem não sabe?
As tentativas falhadas falam por si: programas como o EuSouDigital.pt que prometia ensinar um milhão de portugueses a usar a internet, recorrendo a voluntários sem qualquer certificação de competências, demonstram que, sem visão e sem rigor, tudo se resume a anúncios de fachada. Tanto não cumpriu, como já nem está disponível online…
Neste cenário de vulnerabilidade coletiva, o Portal da Queixa tem cumprido, dentro das suas possibilidades, o papel que deveria ser reforçado pelo Estado: informar, alertar e capacitar os consumidores. Fomos pioneiros ao lançar, de forma totalmente gratuita, a ferramenta Não Sejas Pato, uma ferramenta de verificação de marcas e sites que já ajudou mais de 100 mil consumidores a evitar burlas. O movimento #NãoSejaPato é mais do que um simples site — é uma bandeira de responsabilidade social que deveria inspirar políticas públicas de literacia digital.
Apesar de Portugal surgir ligeiramente acima da média europeia no ranking da literacia digital, com 56% da população entre os 16 e os 74 anos a possuir competências digitais básicas, face a uma média europeia de 55,6% de acordo com o Digital Skills Indicator 2.0 de 2023 da Comissão Europeia, este dado deve preocupar-nos mais do que orgulhar-nos. Estar apenas marginalmente acima do mínimo não é um feito, é um alerta: significa que continuamos a navegar à vista, sem uma estratégia robusta para capacitar verdadeiramente os cidadãos para os desafios de um mundo digital cada vez mais hostil. Pior ainda, menos de um terço dos portugueses detém competências digitais acima do nível básico, o que contraria frontalmente as ambiciosas metas europeias para 2030 e deixa milhões vulneráveis a burlas, fraudes e exclusão digital. É urgente inverter este cenário com políticas sérias, contínuas, estruturadas e não com programas avulsos e de curta duração.
Para se ter uma ideia da dimensão do flagelo, só desde o início de 2025, o Portal da Queixa já registou mais de quatro mil reclamações relacionadas com burlas online. Estes números não são apenas estatísticos: são o reflexo real de uma tendência que se agrava de ano para ano, confirmando que os esquemas fraudulentos se tornam mais sofisticados e eficazes enquanto as políticas de proteção dos consumidores permanecem praticamente estagnadas. A cada nova vítima, torna-se mais claro que o esforço legislativo e de fiscalização não acompanha a velocidade dos criminosos, muito menos consegue proteger quem, por falta de literacia digital, continua a ser alvo fácil. Se nada mudar, é legítimo afirmar que continuaremos a engordar as estatísticas do crime digital enquanto o Estado assiste, impotente, a esta escalada de fraude organizada. É imperativo passar das intenções às ações, com medidas integradas de prevenção, educação e responsabilização.
Posto isto, é imperativo perguntar: Qual é, afinal, o papel do Estado nesta matéria? Como pode a sociedade educar-se, se os próprios organismos que a deveriam liderar falham no exemplo? Quem está realmente capacitado para ministrar esta educação digital?
Estas não são questões retóricas, são exigências urgentes para um debate sério. É hora de deixar a hipocrisia de lado e investir, de facto, na literacia digital. Se o Governo não tem competência técnica, que tenha humildade para delegar em quem sabe e em quem já faz.
Enquanto o crime digital avança, ficarmos parados custa-nos demasiado caro.